I.
E, por favor, deixem-me contar, finalmente, a história recente do meu rosto.
II.
Começo dois anos antes do início. Porque se o exercício de lembrar parece de alto risco, já que ativa memórias nem sempre desejáveis, esquecer é preço que não pago mais, pois aprendi que meu corpo não aceita desaforo. Assim, portanto, narro tentando preencher os meus silêncios sintomáticos, tornando história a palavra antes impronunciável. Descobri, há pouco tempo, que não escrevo quando quero, mas sim quando não aguento, ou melhor, apenas a partir do limite das minhas forças de resistência. Até nos meus pesadelos, quem diria, tenho sido convocada a fazer este ensaio. Vejam como o passado também pode ser perigoso: estamos sempre sujeitos a ser pegos por ele de assalto, pois dias que parecem comuns, com o passar dos anos, revelam-se peças fundamentais de um quebra-cabeças intricado. E foi em meados de 2016 que, grávida, perdi parte do mundo como o conhecia, agora posso saber. Eu estava na sala de reuniões do meu antigo escritório de advocacia, quando dois senhores de terno, aparentemente distintos, entraram. Após apertarem minha mão, eles passaram a me apresentar os detalhes do negócio que estavam me convidando a tomar parte. Ambos tinham a expertise necessária para o que propunham, logo, lembro-me de pensar que eu estava diante de uma boa oportunidade. Já quando do fim do encontro, eu lhes pedi que deixassem os documentos do assunto comigo, pois precisava analisá-los, mas comentei que possivelmente fecharíamos a parceria. Em seguida, ofereci-lhes um café. Sorridentes, ambos aceitaram minha gentileza. Estávamos já conversando amenidades, quando um deles, então, comentou: Como é bom encontrar uma moça como você, jovem e competente, respeitosa dos preceitos de Deus. Com a invasão das universidades por estas bruxas feministas, cada vez mais, as mulheres estão se desvalorizando, abandonando a maternidade, que é a mais bonita vocação de suas existências. O PT arruinou a educação do nosso país, encheu as escolas de kit gays, as crianças estão se tornando, desde cedo, pervertidas. Em seguida, o outro emendou: Seu marido deve estar orgulhoso de ter encontrado uma moça de família como você. Após escutar tais falas, agradeci os elogios que eles supunham que haviam me feito e, imediatamente, pensei: estou diante de dois lunáticos. Melhor não retrucar, fatos não se farão compreendidos por pessoas que decidiram acreditar em maluquices. Depois de me despedir deles, ainda estarrecida, lembro de ter concluído: jamais posso ser sócia de pessoas insanas assim. De que planeta vieram? De onde tiraram tudo isto?
Há coisas que não podem ser negociadas. E naquele fim de tarde, quando fechei a porta, tinha certeza de que não voltaria a reencontrá-los. Simplesmente, parecia-me impensável conviver com tamanha falta de compreensão de realidade. No entanto, mal eu sabia que, nos meses seguintes, falácias como as que eles me disseram seriam repetidas, à exaustão, por muitas pessoas que eram minhas conhecidas.[ii] E que estas, sempre quando confrontadas com a falta de evidências do que tanto defendiam, fugiam do enfretamento da questão. De uma antiga colega de trabalho, “cidadã de bem”, dona de um estranho brilho no olhar, pouco tempo depois, eu escutaria: esta gentalha esquerdista deveria ser toda fuzilada. Mas coisas ainda mais tenebrosas não tardariam de acontecer: em 17 de abril de 2016, a Câmara aprovaria o início do processo de impeachment de Dilma Rousseff, então presidente do Brasil, cujo governo vinha enfrentando uma severa crise econômica e política. Nesta ocasião, o deputado Jair Bolsonaro, quando do momento da declaração do seu voto, louvaria, sem pudores, a figura de Carlos Alberto Brilhante Ustra (primeiro oficial militar condenado em ação declaratória por sequestro e tortura, conhecido por colocar ratos em vaginas das presas políticas, além de perverso algoz de Dilma Rousseff quando ela esteve nos porões da ditadura). Só que, ao contrário da minha expectativa, tal fala contrária a qualquer ética civilizatória básica, não causaria a repulsa da maioria daqueles que me cercavam. Muito pelo contrário: vários deles até comemoraram o ódio explícito de Jair Bolsonaro, sentiam-se devidamente representados por ele, vingados. Mais do que críticos ou adversários políticos, estes meus conhecidos entendiam os membros do PT como verdadeiros inimigos pessoais, figuras desumanizadas a serem eliminadas do seio social. Sim, a retórica do horror se internalizara como um vírus. De tudo, o mais assustador foi ainda descobrir que nem mesmo parte da minha família e amigos restariam imunes a isto.
III.
Há uma frase atribuída a Carl W. Buehner que vive aparecendo nas minhas redes sociais, ou seja, uma máxima cuja autoria não sou capaz de certificar, que afirma algo como “as pessoas esquecerão o que você disse, as pessoas esquecerão o que você fez. Mas nunca esquecerão como você as fez sentir”. Paro, então, para refletir por alguns minutos. Afinal, o que desejo mesmo com este ensaio? O que, de fato, eu gostaria que ele despertasse em meus leitores? Tenho total consciência de que, num primeiro momento, serei apenas lida por aqueles que dividem os mesmos valores comigo e que, muito provavelmente, estas minhas sentenças serão tomadas por estes com alívio. Quase sempre, a partilha de um mal-estar tem efeito sedativo, já que por instantes, mostra-nos que nossa angústia é real e que não estamos solitários em nossa dor. A cura sempre parece mais possível quando é busca coletiva. E, lógico, acho muito importante que minhas ideias tenham tal efeito, mas percebo que preciso acreditar que elas podem se revelar mais do que uma pregação para convertidos. Portanto, farei de tudo para que este texto chegue naquelas pessoas que raciocinam de modo distinto do meu, preciso, sem interrupções ou julgamentos peremptórios, dizer-lhes por que penso deste jeito, não quero debates infrutíferos, acredito no diálogo honesto e na educação formal como modos de transformação. Planejo: assim que publicado, eu o enviarei para minhas tias, primos, conhecidos e vizinhos. Tomarei muito cuidado com a linguagem, pois ao longo dos últimos anos, as palavras se tornaram campos de batalha, tiveram seus significados ampliados, ganhando sentidos diversos, muitas vezes, até antagônicos àqueles que constam nos dicionários. O fato é que estamos todos perdidos numa conversa sem noções partilhadas, odiando e sendo odiados, soldados de uma guerra sem limites conhecidos. Para atender aos meus objetivos, portanto, faço um primeiro gesto, reconheço premissas: sim, existem evidências de corrupção nos governos petistas e, sim, no último mandato presidencial do partido, foram tomadas algumas medidas populistas que tiveram péssimas repercussões econômicas. Também concordo que, buscando construir pontes com seu eleitorado, o PT se valeu, no passado, de um discurso que, ao iluminar os motivos e atores de nossas inequidades estruturais, acirrava certos antagonismos. Mas agora, por favor, deixem-me contar o porquê de, mesmo reconhecendo tais problemas, eu entender como muitíssimo mais hediondo tudo que isto que hoje nos abate.
IV.
Estamos no final de setembro de 2018, pouco depois do aniversário de minha avó materna. Naquela cama de hospital, vejo-a convalescendo de uma infecção urinária. Eu me encontro sentada numa poltrona ao seu lado e minha madrinha também está no pequeno leito. Há um clima de esperança entre nós, naquele dia, a alta havia sido agendada. Nós conversávamos e ríamos juntas, até que, de repente, o assunto proibido apareceu na televisão e um silêncio se instaurou. Naquele período, eu discutia quase diariamente com alguns membros da minha família. Porque embora reconheça a importância do combate à corrupção, nunca me pareceu que isto deveria ser feito ao arrepio da lei. Quem limita os poderes daqueles agem em nome da lei contra a própria lei para supostamente protegerem os “fins” da lei? Além do mais, tendo eu conhecimento jurídico e histórico, soava-me como uma aberração que agentes públicos ignorassem princípios democráticos basilares (tais quais a presunção de inocência e o devido processo legal) a fim de, em tese, buscar a punição daqueles que crimes públicos teriam cometido. Como posso imputar o status de criminoso para um sujeito que não teve um julgamento imparcial? Sempre soube que qualquer justiça efetiva apenas se faz com o respeito das regras pactuadas socialmente e que o descrédito das instituições de um país costuma gerar justiçamentos absurdos, ou seja, pura barbárie. Nenhuma violência, ressalvadas aquelas cometidas em estrita legítima defesa, encontra apoio em mim. Além do mais, nunca fui afeita a ídolos, penso políticos como empregados públicos. Deste modo, vinha me parecendo insuportável acompanhar um certo fascínio que os agentes da Lava Jato pareciam exercer sobre minhas tias. Também me irritavam certas irresponsabilidades que elas praticavam, pois espalhavam notícias de teor duvidoso, através dos seus celulares, sem nenhuma reflexão prévia. Entre 2016 e 2018, pude ter certeza de que muitas pessoas, apesar de terem frequentado bancos universitários, desconheciam conceitos elementares do debate público. Parte da minha família, inclusive, encontrava-se nesta situação. E eu, ainda que continuasse ocupando um lugar amoroso nos seus corações, fui alçada à condição de “comunista”, uma caricatura tosca por conta das minhas falas elogiosas aos programas sociais de transferência de renda. Surdas para qualquer complexidade, minhas tias, assim como boa parte da sociedade brasileira, passaram a classificar visões de mundo sofisticadas a partir de conceitos binários e esvaziados. Não sabiam ao certo o que “direita” ou “esquerda”[iii] significavam e, pouquíssimo preocupadas com um plano econômico que pudesse construir um Brasil mais inclusivo (um objetivo que bastaria por si só, mas que também ajudaria a diminuir a assustadora violência que nos assola), elas se mostravam encantadas com a fantasia de que “lutavam” contra o mal. Esta nova função, já na maturidade de suas vidas, parecia-lhes irresistível, defendiam com afinco aquilo que Jair Bolsonaro, sim, ele mesmo, o apoiador da ditadura e da tortura, agora candidato à presidência da república, proclamava. Não adiantava que uma de suas irmãs (minha mãe, no caso) questionasse as premissas de tais ideias. Nem que eu, uma sobrinha querida, levantasse as contradições neste discurso. Como pude logo perceber, elas estavam inebriadas por terem suas visões de mundo validadas, mesmo que através de meias verdades. Isto fazia com elas trabalhassem de graça para a campanha de Jair Bolsonaro, algo que, no fundo, faziam também por si mesmas, agindo sem uma racionalidade mínima. Curiosamente, no passado, quase todas foram eleitoras de Lula. O que havia, então, modificado seus pontos de vista de modo tão radical? A resposta: elas se ressentiam que muitas das promessas feitas pelo PT não foram cumpridas. O partido havia tirado delas a esperança de um país justo, livre de corrupção. Oferecendo atalhos para os mais pobres (algo que elas consideravam meras maquiagens), em suas opiniões, o PT acabou alçando pessoas desqualificadas para postos de poder, enquanto a classe média ia perdendo espaço dia após dia. Além do mais, apesar dos impostos que pagavam, o Estado, infestado por corruptos vermelhos, nenhum serviço de qualidade lhes provia. Deste modo, elas se sentiam traídas, enganadas. Sim, mais de uma vez, escutei a palavra traição.
V.
Não, não é o que você disse. Ou que você fez. Mas como você as fez sentir. Como as fez sentir.
VI.
Segundo Maria Rita Kehl:
“No caso da ‘psicologia do bolsonarista’, vale considerar o momento anterior à retração econômica – esta que aniquilou o segundo mandato de Dilma Rousseff e pegou em cheio o governo ilegítimo de Michel Temer. Durante o período de crescimento econômico promovido pelos governos petistas anteriores a 2014, um grande contingente de “pobres” ascendeu aos padrões econômicos da classe média baixa. O Bolsa Família, ao contrário do que diziam seus detratores, não funcionava como “bolsa-esmola” para alimentar a vadiagem do povo. Muitas famílias que viviam abaixo da linha da pobreza usaram o pouco dinheiro do programa, ou parte dele, para iniciar pequenos negócios. De criação de cabras (começando com dois ou três animais…) à abertura de videolocadoras ou fornecimento de comida caseira, muitos beneficiados pelo programa criaram alternativas de sobrevivência. Vale lembrar que a maioria desses beneficiários, tão logo se firmava em um novo negócio ou um novo emprego, declarava não precisar mais do auxílio; já se sentiam pertencendo, daí por diante, a uma emergente classe média baixa. Presenciei algumas demonstrações do desagrado de pessoas ‘tradicionalmente’ de classe média ou alta contra a invasão daqueles ‘expobres’ em seus espaços de prestígio. A frase, por exemplo, ‘este aeroporto está parecendo uma rodoviária’ traduz a rejeição de passageiros de quarta ou quinta viagem à presença dos que provavelmente pegavam um avião pela primeira vez, que ‘desprestigiariam’ o sinal de status recentemente adquirido pelos insatisfeitos. A rejeição e o ressentimento não se dirigiram aos passageiros mais endinheirados do que eles, mas àqueles em relação aos quais os revoltados gostariam de ostentar pelo menos uma pequena diferença. A presença de pessoas mais pobres nos aviões anulava o privilégio dessa diferença. Freud criou o conceito de ‘narcisismo das pequenas diferenças’ para tentar entender o avanço do antissemitismo que precedeu a eleição de Hitler. A rejeição do povo alemão aos judeus não se fundava apenas na concorrência que os comerciantes e trabalhadores judeus representavam para os alemães numa economia em crise. A sensibilidade analítica de Freud detectou uma questão psicológica determinante na ascensão do nazismo: o fato de que, culturalmente, os judeus tinham muito mais semelhanças do que diferenças com o povo alemão. Os argumentos que movem a intolerância baseiam-se na busca de diferenças inconciliáveis entre povos ou culturas que, ao contrário, contam com uma larga margem de aspectos em comum. É mais fácil tolerarmos uma cultura exótica do que outra tão próxima à nossa que desafia nossa segurança identitária. Não ignoro (tampouco Freud) que muitos povos tribais foram escravizados por civilizações supostamente mais ‘adiantadas’; mas nesse caso não se trata de ódio, e sim de menosprezo. Já o ‘narcisismo das pequenas diferenças’ volta-se para o vizinho, o semelhante, aquele que poderia ser ‘quase um de nós'”.
VII.
Num vasto campo verde, avisto um lindo lobo branco. Está um belo dia de sol e tento me aproximar dele, noto seu dono alisar seu pelo e desejo fazer o mesmo. Já estou muito perto, quando o homem vira o rosto e sou tomada por frio na espinha. Acordo. Um segundo é o suficiente para a transformação de um sonho em pesadelo. Pessoas boas podem fazer coisas terríveis. Pessoas más podem fazer coisas incríveis. Hitler, desde aquela madrugada, olha para mim.
VIII.
Durante a campanha eleitoral de 2018, no grupo de WhatsApp da família, escrevo que o ideário bolsonarista guarda similaridades com o discurso nazifascista. Afinal, ambos se ancoram: i) em falas de ódio dirigidas para uma categoria de sujeitos como se estes fossem inimigos de Estado (para os nazistas, estes seriam os judeus; para os bolsonaristas, os chamados “esquerdistas” – aliás, quem é capaz de esquecer o “vamos metralhar a petralhada”?); ii) em uma suposta luta “anticomunista” (no Brasil de 2018, é preciso lembrar, qualquer progressista era chamado de comunista sem nenhum rigor por parte de alguns autoproclamados “direitistas”) ; iii) num nacionalismo indisfarçável (o que dizer do lema “Deus acima de todos e Brasil acima de tudo”, tradução quase perfeita do “Deutschland über alles“, lema nazista?), iv) numa ode ao militarismo (“O que seria do Brasil sem as obras do governo militar?”, já disse Jair Bolsonaro.) e, por fim, V) num certo idealismo do passado (imbrochável…, não, esta piada, eu não perco). Para mim, era muito claro que o nazismo, ao dividir seres humanos em categorias hierarquizadas, não buscava o respeito à diferença, mas instrumentalizava a revolta contra a situação socioeconômica do momento para a manutenção de uma ordem perversa que atendia aos interesses daqueles que se encontravam numa condição favorecida. Ao dizer estas coisas, no grupo da família, imediatamente, sou acusada por uma prima querida de estar agindo de acordo com a lei de Godwin, ou seja, de estar levantando tal comparação porque já havia esgotado todos os meus argumentos razoáveis, por não reconhecer que estava perdendo a discussão.
Menos de dois anos depois, em 16 de janeiro de 2020, o secretário de Cultura do governo Bolsonaro, Roberto Alvim, apenas um dia depois de ser elogiado pelo presidente, publicou um vídeo, dizendo: “A arte nacional da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes do nosso povo, ou então não será nada”. Tais frases, dentre outros elementos da “performance” do secretário, assemelhavam-se a um discurso feito por Joseph Goebbels, o grande ideólogo da propaganda nazista, em 1933.
Em julho de 2021, a deputada alemã Beatrix von Storch, do partido de extrema-direita AfD e neta de Ludwig Schwerin von Krosigk, antigo ministro das Finanças do regime nazista de Hitler, foi recebida e posou para uma foto com Bolsonaro no Palácio do Planalto. Segundo ela, sua visita tinha como objetivo fortalecer suas conexões e “defender nossos valores cristãos e conservadores em nível internacional”.
IX.
“É lamentável o que ocorreu no Congresso de Médicos em Wiesbaden! Agradeceram a Hitler várias vezes, com muito entusiasmo, por ser o ‘salvador da Alemanha’, ‘apesar de’ a questão racial ainda não estar bem esclarecida e ‘apesar de’ grandes descobertas terem sido realizadas por cientistas ‘estrangeiros’, como Wassermann, Ehrlich e Neisser.”, escreveu em 20 de abril de 1933, no seu diário, o judeu Victor Klemperer (A linguagem do Terceiro Reich, editora Contraponto).
“Apesar dos atos horrendos que ele praticou na pandemia”. “Apesar de ele ter dito estas coisas (ou seja, qualquer fala desconexa, mentirosa ou desrespeitosa)”. “Apesar de ele ter tentado colocar seu próprio filho, sem experiência alguma, como embaixador do Brasil nos Estados Unidos.” “Apesar dos escândalos de corrupção no seu governo.” De quantos “apesar de” se fazem as tentativas de minimizar os horrores cometidos pelo Bolsonaro? Como médicos e grandes empresários ainda o apoiam? Não ficou claro o suficiente que, para além do desastre ambiental e social, suas políticas econômicas não permitiram, de fato, nenhum crescimento ou desenvolvimento sustentável? No governo Bolsonaro, inclusive, o Brasil voltou para a linha da Fome das Nações Unidas, condição deplorável que precede a pandemia. Por que mesmo em 2022, frente a atrocidades incontestáveis, tantas pessoas são incapazes de assumir que erraram?
Em uma passagem de Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt questiona: “Trata-se de um caso exemplar de má-fé, de auto-engano misturado a ultrajante burrice? Ou é simplesmente o caso do criminoso que nunca se arrepende (Dostoiévski conta em seu diário que na Sibéria, em meio a multidões de assassinos, estupradores e ladrões, nunca encontrou um único homem que admitisse ter agido mal), que não se pode permitir olhar de frente a realidade porque seu crime passou a fazer parte dele mesmo?”.
X
“No centro de nossa vida moral e de nossa imaginação moral estão os grandes modelos de resistência, as grandes histórias daqueles que disseram não”, escreveu, certa vez, Susan Sontag em Ao mesmo tempo, editora Companhia das letras.
XI.
Eu disse não. Muitas mulheres, em 2018, também disseram Ele não. Mas por que tantas outras, incluindo algumas do meu próprio sangue, não?
XII.
Minha avó, Rosalva Leal Conceição, foi uma das pessoas que mais amei na vida. Solar e muito encantada pelas coisas simples da existência, desafiava qualquer previsão que pudesse ser feita sobre ela. Órfã de mãe aos quinze anos, ao lado dos seus quatro irmãos, foi criada pelo pai, em Santo Amaro da Purificação. Já crescida, casou-se com meu avô e conseguiu realizar seu maior sonho: ter filhas. Suas quatro meninas, muito desejadas, receberam nomes que começavam com a letra R. E sempre quando falava do assunto, minha avó ressaltava que queria ter tido ainda mais duas, seis lhe parecia o número perfeito de crianças numa casa. Mãe dedicadíssima, ela costurava para os netos, mas em nada lembrava a caricatura de uma mulher velha, infeliz ou cansada. Admiradora das belezas do mundo e bastante hedonista, já na terceira idade, ocupava seus dias com os cuidados domésticos e aulas diversas, inclusive de ballet e ginástica. Ainda na juventude, com o incentivo de meu avô, rompeu com certos moralismos patriarcais. Sem pedir desculpas a ninguém, ela usou calças, dirigiu carros, andou de bicicleta, coisas que nos parecem simplórias agora, mas que sofriam censura social naquele tempo. Certa vez, muito idosa, vendo a parada gay na televisão, ela chegou a me dizer: essas pessoas antes eram considerados doentes. Agora são livres. Que bom que já podem ser quem são. No período em que eu estagiava num escritório de advocacia, minha avó sempre me presenteava com uma revista para que eu pudesse dar uma “espiadinha” no horário de trabalho, afinal, em sua opinião, eu precisava me distrair, a juventude pedia isso. Aos oitenta e seis anos, ela se tornou a estrela absoluta de um curta metragem que produzi, o Vestígios da Senhorita B. Tínhamos quase sessenta anos de diferença de idade e, desde a minha infância, eu temia terrivelmente a sua morte. Muito mais do que um projeto com ambições artísticas, o Vestígios foi o meio que achei de ter um encontro profundo e amoroso com ela. Hoje, passados os anos, percebo: ele era uma espécie de ensaio para nossa despedida.
Mudei-me para São Paulo em 2008. Falava sempre ao telefone com minha avó e, nas minhas visitas frequentes para Salvador, ela entrava apressadamente pelos corredores da casa de meus pais, chamando pelo meu nome. Minha avó me amava profundamente, assim como aos outros netos, jamais tivemos dúvidas disso. Apaixonada por vestidos, levava-me para comprar tecidos, um prazer que adquiri e, até hoje, desfruto na companhia de minha mãe. Muito mais do que a roupa em si, para as mulheres da minha família, o que importava era o sonho, o processo criativo. Permaneço com o hábito de experimentar e tirar fotos do que pretendo vestir, em ocasiões especiais, e as envio para que minha mãe e primas opinem sobre meu figurino. Na minha pequena família de mulheres, este é o nosso idioma, verdadeira língua.
Em outubro de 2018, quando recebi o telefonema que ensejaria este ensaio, curiosamente, eu estava também na sala de reuniões do meu antigo escritório de advocacia, a mesma em que recebi os primeiros fascistas que conheci.
XIII.
Não é simples envelhecer, descobrir seu descompasso com o mundo que o cerca, especialmente, na velocidade ditada pelas mudanças tecnológicas contemporâneas. Também é muito duro perder renda, espaço, sentir-se confuso entre tantos aplicativos e ver seu estilo de vida alterado radicalmente por algo que você não foi capaz de dar conta de início. Mais atordoante ainda parece ser impelido a rever todas as bases em que você construiu sua existência. No caso das mulheres, geralmente, tais fatores se somam a um elemento mais drástico: o patriarcado. Criadas para seguirem um script pré-estabelecido e limitante para o feminino, ensinadas a verem como “naturais” as discrepâncias entre homens e mulheres nos espaços remunerados, a romantizarem instituições de poder como o casamento e a família, muitas não conseguem sair desta lógica primeira que marca suas escolhas e modos. Pode-se ainda adicionar uma complicação adicional para aquelas que praticam preceitos religiosos de modo rígido, pois constantemente sentem-se vigiadas por um “Deus punitivo”, um “outro” que as sancionará caso “fujam da linha.” Esta disciplina totalitária dos corpos femininos gera consequências severas, pois tomadas utilitariamente desde o nascimento, muitas mulheres não costumam se sentir dignas de prazer, constroem relações tóxicas sem sentido, aliando-se aos seus opressores por medo de ficarem sozinhas. Fora o fato de que reproduzem tal opressão com as gerações seguintes, ajudando a perpetuar tal ciclo. Assim, não me espanta que muitas de nós precisem da figura de um “messias”, de um “salvador”, ainda que de barro. Olhar para dentro e questionar estruturas não é tarefa simples, demanda coragem para enfrentar preconceitos arraigados. Sinto certa solidão, é verdade, por não encontrar nas mulheres que amo, a possibilidade de uma conversa que verse sobre temas não tradicionalmente dados como femininos e por muitas vezes, ao desafiar o coro de convenções irrefletidas, acabar desagradando-as. Mas entendi que não existe alternativa possível para mim a não ser quem sou e me recuso a ficar cega, diante dos absurdos que se apresentam. De todo modo, quero ressaltar que entendo que mais do que apontar dedos ou tratar como inimigas as que não chegaram ainda a tal nível de percepção de realidade, parece-me papel de nós, feministas, encontrar um jeito de nos aproximarmos destas outras e, sem violências discursivas, apresentar-lhes os números e circunstâncias de nossa realidade.
XIV
Eu estava olhando para a mesa de fórmica preta, da sala de reuniões do meu antigo escritório de advocacia, quando num telefonema vespertino, uma pessoa muito próxima me comunicou que minha avó estava em estado terminal. Foi-me dito também que suas duas internações prévias, inclusive aquela da infecção urinária, já eram consequências da sua debilidade física. Lembro-me de, naquele momento, não sentir absolutamente nada, ou seja, nem tristeza, dor, ou mesmo, desespero. Um vácuo havia tomado conta dos meus sentidos. Lembro-me também de ter pensado: Não tem problema isso. Em gente velha, câncer não mata, pois as células se reproduzem mais lentamente.
XV
Michela Murgia diz:
“Uma democracia jovem, especialmente se tiver nascido de uma guerra ou revolução civil, será muito reativa ao fascismo, mas uma democracia – suponhamos – com cerca de setenta anos de idade nas costas já terá perdido grande parte de sua memória inicial e enterrado as testemunhas oculares que, com seus relatos, sustentavam a retórica democrata. Além disso, já estará suficientemente desgastada e corrompida a ponto de considerar fazer acordos políticos cada vez mais significativos com outros métodos de governo. A essa altura, se o fascismo for espertinho e souber aproveitar a oportunidade, poderá chegar a governar Estados inteiros sem precisar empunhar uma arma sequer: os instrumentos da própria democracia permitirão que o fascismo se afirme e, por fim, prevaleça.”
XVI.
“Fotografem tudo agora, registrem, peguem as testemunhas, porque, um dia, no futuro, algum desgraçado se levantará e dirá que isso jamais aconteceu.”, previu o General Eisenhower, comandante da operação que libertou os judeus do campo de concentração de Dachau.
XVII.
Com meu marido, caminho pelas ruas de Salvador, em sete de setembro de 2022. Vejo muitas pessoas vestidas com camisas da seleção brasileira e descubro estar bem próxima de uma manifestação a favor de Bolsonaro. Reconheço vagamente alguns rostos e acabo tomada um mal-estar imenso. Descubro: sou um deles mesmo sem ser, ainda que os renegue, ainda que me mantenha distante, ainda que more em outro lugar. O mal também vive em mim, eventualmente, possuo sentimentos espúrios, mas o ponto é que fiz outras escolhas, não sucumbi, fugi de tudo isto para me tornar outra, escritora. Como nascida e criada nesta cidade, fruto perfeito desta classe alta baiana, tornei-me alguém tão diferente dela? Sinto pavor da possibilidade de encontrar minhas tias por aqui. Penso nesta visão arcaica de país, nesta falta absoluta de compreensão da coisa pública, da completa ignorância a respeito das instituições, deste vergonhoso patrimonialismo que no rodeia. Penso que o Brasil nunca deixou de ser colônia, vejo um homem com uma camisa verde e amarela escrita Hilfiger, sinto uma vergonha imensa disso tudo, de estar tão próxima, de me misturar, de ser confundida com gente que pensa assim. Dias depois, percebendo que eu estava muito revoltada, meu marido diz: lembre-se de como foi para você em 2018. Lembre-se do que aconteceu com seu rosto.
XVIII.
E, por favor, deixem-me contar, finalmente, a história recente do meu rosto.
XIX.
Minha avó já agonizava na cama quando, certo dia, a moça que fazia minha sobrancelha comentou: Rê, você está com uns cílios novos mais claros. Curioso isso.
Minha avó já agonizava na cama quando, vinte dias depois, uma outra pessoa me falou: que manchas são estas? São marcas mais brancas do que o esperado.
Minha avó já agonizada na cama e o Bolsonaro vencia as eleições, quando veio o veredicto: Renata, você está passando por alguma séria questão emocional? Isto é muito raro aos trinta e seis anos. Você está com vitiligo.
XX.
Minha avó morreu no dia 22 de dezembro de 2018. Na véspera de sua passagem, vesti uma das camisolas que ela sempre me dava, nas noites em que eu dormia em sua casa. Intuí que aquela poderia ser a última vez em que faria isso. Ainda a deixei com vida, quando saí. De todo modo, pouco antes, já havia ocorrido a nossa despedida. Vendo-a em extremo sofrimento, como havíamos ensaiado no curta-metragem do Vestígios da Senhorita B, dei-lhe a benção do fim. Sim, vó, pode partir. Sempre estarei por você. Aqui.
XXI.
Faz tempo que ensaio falar sobre o vitiligo, esta minha doença com data certa, que completa aniversário. Esta doença sem bordas definidas, esta doença da não mistura, como bem diz o meu analista. Esta doença quase imperceptível em mim, esta doença que me lembra o quanto temo o fascismo coletivo e a morte das pessoas queridas, pior, o fascismo que é a morte em vida das pessoas queridas. O vitiligo, esta doença metáfora do impasse que vivo: como mais branca entre os meus brancos, posso continuar amando aqueles iguais brutalmente opostos a mim, tão meus antagônicos?
XXII.
Na Folha de S. Paulo, Conrado Hubner ressalta:
“A recusa em admitir a anormalidade brutal da política bolsonarista, mesmo pelos frágeis padrões de normalidade dos últimos 30 anos, está ajudando a liquidar os ativos democráticos que restam.
Negacionistas do risco democrático, essa turma animada que congrega cientistas políticos, jornalistas, economistas, autoridades e até ministros do STF, sambaram no palco da preguiça analítica e da apatia política. Ironizaram o alarme num edifício em chamas. Chamaram de alarmismo os esforços pragmáticos de autodefesa. E descansaram na poltrona reclinada do antialarmismo sedentário.
Enquanto as casas de tolerância à delinquência política continuam a brochar, Bolsonaro remove pilares democráticos. Politicamente, nunca brochou. E pensavam que ele se referia à sua contestada potência sexual. Não era só um pândego de palanque, com pânico de brochar, mas um profissional da violência simbólica e concreta.
O voto resignado em Lula no primeiro turno não se confunde com ‘voto útil’ porque nosso repertório conceitual da normalidade política não se aplica a uma eleição existencial. No conceituário da emergência, ‘voto útil’ perde lugar. Frívola demais, a noção subestima a enormidade do perigo. Fraca demais, não justifica nem explica escolhas eleitorais nessa conjuntura.
Estamos diante de ‘voto de sobrevivência’. Sobrevivência de um projeto de vida individual e coletivo. Onde igualdade na diferença e liberdade na interdependência tenham alguma chance.”
XXIII.
Qual estrela cai sem que ninguém a veja?, pergunta William Faulkner.
Eu respondo: aquela dourada que minhas tias nunca avistaram. A da democracia.
XXIV.
Não é bonito que, justo em 2022, ano das novas eleições presidenciais, tenha sido anunciada a descoberta da cura para o vitiligo?
XXV.
Tudo é pele. Embaixo, sangue.
Minha mãe adoeceu em 2021. Foi um sofrimento atroz para mim. Sem o apoio irrestrito de minhas três tias, creio mesmo que não suportaríamos tudo aquilo. A dedicação, amor e partilha delas, naquele momento tão árduo das nossas vidas, jamais serão por mim esquecidos.
Tudo é pele. Embaixo, sangue. Em cima, tecido.
Uma das minhas tias adoeceu agora, em 2022. Na mesma conversa de Whatsapp em que trocamos farpas a respeito de Bolsonaro, eu lhe digo: já estou sabendo de tudo. Não se preocupe. Pode contar comigo.
XXVI.
No céu, avisto uma estrela dourada. Talvez eu não esteja mais tão sozinha. Sim, ela há de voltar a brilhar.
Vale conhecer o que diz Michela Murgia, em Instruções para se tornar um fascista (editora Âyiné): “O bem primeiro, aquele pelo qual todos trabalhamos e lutamos, é sempre a família. Desse modo, evidenciar o quão enfraquecida está a família é essencial para suscitar um espírito bélico saudável nos pais e mães. Os inimigos da família são aqueles que procuram subverter os papéis naturais do homem e da mulher e suas funções tradicionais. As duas categorias que procuram fazê-lo há décadas são sempre as mesmas: as feministas e os gays.”.
Michela Murgia também aponta que, neste tempo, o fascismo tem uma nova circunstância: o fato de que seus adeptos podem falar, sem parar, o tempo inteiro, nas redes sociais, tornando todas as suas vozes uma só, algo quase sem autoria individual. Minando o princípio da autoria de opiniões, o verdadeiro e falso passa a não ser distinguível com base em quem afirma e se começa a demolir figuras de autoridade moral ou científica, invalidando competências e experiências, fazendo com que ninguém seja, de fato, ouvido, enquanto todos têm a sensação de que falam e não estão sendo silenciados. As redes sociais ainda permitem que um “grande chefe” fale diretamente para as massas sem passar por mediadores sociais.
Sobre a falta de compreensão a respeito destes vocábulos, parece interessante conhecer a fala de Idelber Avelar em Eles em nós. Retórica e Antagonismo Político no Brasil do Século XXI (editora Record), que apresenta um componente histórico “Encharcado de desmemória”, o sistema político brasileiro se arrastava na premissa implícita de que “direita” é sinônimo de ditadura militar e ódio aos pobres. Tratava-se de um não reconhecimento da possibilidade legítima do mundo que fosse economicamente de direita, o que não está desvinculado da ausência do trabalho de memória da ditadura militar no Brasil. A própria esquerda reproduziu a desmemória ao realizar essa sinédoque “Como a ditadura militar é odiosa, retirou renda dos pobres, e era de direita, toda direita tende a ser ditatorial e odeia pobres. “Trata-se aqui de uma caricatura, claro, mas ela não é muito distante da premissa que organizava a pragmática do termo ‘direita’ na grande maioria das variações dialetais do português falado no Brasil dos anos 1980 e 1990.'”
Renata Belmonte é Mestre em Direito e Desenvolvimento pela Fundação Getulio Vargas de São Paulo e Doutora em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo. Autora de Mundos de uma noite só (editora Faria e Silva), entre outros livros.
Imagem: colagem de Sumaya Fagury com fotografia da autora.
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