Há um encanto universal nos chamados coming-of-age — filmes que se dedicam ao crescimento interior impulsionado pelo avançar da idade. Ainda que reportem particularidades agridoces da adolescência, são campos férteis de identificações diversas por conterem fragmentos não assimilados de uma juventude que ainda ecoa na vida adulta.
É como olhar para os personagens de Conta comigo (1986), Lady Bird (2017), C.R.A.Z.Y. (2005) ou Hoje eu quero voltar sozinho (2014) e encontrar as próprias reminiscências de um sonho abandonado, de uma ideia esvaziada pelo tempo ou dos dias de coragem. Talvez os filmes sejam capazes de promover o tão evitado reencontro com o que ficou retido com a adolescência; ainda que alguns rejeitem as lembranças deste tempo, a subjetividade decorre também dessa passagem, com suas dores e heranças.
Não é à toa que no livro Adolescência em cartaz (2017), os psicanalistas Diana e Mário Corso fazem a advertência fundamental para se lidar com adolescentes: é preciso que se reconheça como tendo sido um deles. Esta é uma trilha fundamental para se escutar os conflitos e, principalmente, legitimá-los dentro de sua intensidade.
Afinal, o que está em questão não é birra ou aborrescência; é de um luto que estamos diante. Podemos pensar as implicações deste delicado percurso por meio de dois adolescente contemporâneos: Nadine, do filme Quase 18 (2016), e Stevie, de Anos 90 (2018).
Do que se despedem esses jovens, recorrentemente referidos pela sociedade ocidental como “futuro do mundo” e com uma “brilhante estrada pela frente”? É curioso que o futuro seja automaticamente atribuído a esses dois, que aos trancos e barrancos tentam constituir uma mínima permanência no presente.
Vistas por quem está de fora, suas jornadas frustradas e incertas podem parecer um rito naturalizado, daqueles que supomos passageiro. Aos 17 anos, Nadine, graciosamente interpretada por Hailee Steinfeld, vive em pé de guerra com a mãe e o irmão; o pai morreu quatro anos atrás, ao seu lado. Tudo piora quando ela rompe com a melhor e única amiga, Krista, ao descobrir o namoro com o irmão. Sem outras relações na escola, ela recorre ao professor Bruner, que não lhe dispensa qualquer condescendência.
Já Stevie tem 13 anos e seu arranjo familiar também é centrado na mãe, no irmão mais velho e na ausência do pai. Mas ao contrário do lar de Nadine, o cotidiano do garoto, vivido pelo ótimo Sunny Suljic, é tonalizado pela violência advinda do irmão. A relação entre ambos é bastante agressiva e assimétrica, especialmente realçada pela diferença entre os corpos. O irmão mais velho parece não ter dimensão de sua força física, potencializada pela fragilidade de Stevie, que apanha sucessivamente e pensa ter a possibilidade de responder na mesma medida. Se dentro de casa a convivência é constantemente tumultuada, na rua Stevie enxerga outros lugares a ocupar, como a turma de amigos que faz ao andar de skate.
Vistos com a aproximação da câmera e dos diálogos, Nadine e Stevie comportam experiências dolorosas de separação e, necessariamente, de desligamento. Já não cabem na majestosa posição de criança indefesa que outrora habitavam, tampouco podem reivindicar a independência adulta. Respondem a tutelas com a qual já não concordam, e veem no espelho o corpo mutante que não coincide com o dos amigos. Contestam as transmissões passadas pela família e por figuras de autoridade, mas ainda não sabem o que colocar no lugar. Esgotam gritos e choros sem ainda ter à disposição palavras que nomeiem suas batalhas internas.
Assistem, não sem repercussões, ao derretimento da potência idealizada dos pais e buscam a reposição em outros ideais, que os levam a um inesgotável exercício de tentativa e erro. Gostos, prazeres, limites e insatisfações precisam ser redescobertos, pois já não constam de uma cartilha conhecida. E se antes a latência os protegia dos próprios desejos, agora precisam se confrontar com uma sexualidade explicitamente corporificada; como diz Antonio Quinet, “o adolescente é um sujeito que se depara com a conjunção do real do sexo e a responsabilidade do ato”.
A experiência da adolescência não é meramente intervalar; é a inscrição do luto sem que as perdas sejam palpáveis, espremidas entre o compromisso inevitável com o amadurecimento e a despedida de uma subjetividade um pouco mais conhecida e menos assustadora. Não uma corda que naturalmente se estica para interligar dois pontos distintos, mas, sim, fiapos e frangalhos ainda em processo de composição.
Há, no luto da adolescência, a incontornável, mas pedagógica, dimensão da solidão, enfatizada pelos desencontros colhidos na comparação com os amigos e familiares. É como se dirigissem a pergunta a todos que estão ao redor: “É assim que se cresce? É assim que eu cresço?”. Não há equivalência, posto que é de subjetivação que estamos falando. Mas é preciso que haja suporte, estrutura, ponto de apoio. Crescer é também aprender a pedir ajuda, dentro ou fora da família, e os lamentáveis suicídios de jovens denotam a urgência deste aprendizado.
Tanto Nadine quanto Stevie atravessam percursos montados e remontados pelas dúvidas e pela impulsividade. A adolescência, de fato, oferece este espaço para a experimentação de destino incerto ou destino algum. Mas não exime ninguém das consequências: só podem se distanciar da infância aqueles que puderem assumir as faturas impostas pela responsabilização. Os momentos mais emocionantes destes dois filmes são justamente os que narram o acerto de contas com as próprias falas e ações, com toda a carga de sofrimento, rejeição e imprevisibilidade que a vida presume.
De forma plural, a adolescência é uma travessia com delimitações e percalços; singularmente, algumas pedras no caminho podem se tornar excessivamente ameaçadoras. Em comum a todas essas situações deve estar a ética do cuidado, disposta para que estes jovens tenham a possibilidade de dizer adeus a partes de si e então reinvestir afetivamente em rascunhos que terminam por escrever o futuro.
Amanda Mont’Alvão Veloso é psicanalista, jornalista e mestranda em Linguística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Imagem: cena do filme ‘Quase 18’.
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