A angústia em torno da ideia da morte é algo constitutivo ao animal humano. A ideia da morte é algo tão forte que é recalcada logo no nascimento. O bebê, com seu ego ainda não constituído, vale-se do narcisismo dos pais para a construção de um projeto heróico sublimatório que dê conta dessa angústia que ele, sem instrumental psíquico, não dá. Toda a movimentação humana se dá em torno de um projeto heróico que sirva de suporte para a contenção da angústia e do sentimento de paralisia ante uma certeza negada, a morte. De ideias assim é feito o livro A Negação da Morte, obra que concedeu o prêmio Pulitzer a Ernest Becker, em 1974.
Segundo Becker, o grau de adaptação do indivíduo estaria ligado ao nível de encobrimento que o projeto heróico consegue trazer para ele. Nesse sentido, quem “mente bem” estaria adaptado e com suas angústias controladas por um tempo, até se fazer necessária uma nova mentira-remendo. Essas mentiras que nos contamos para darmos conta da certeza da finitude são nomeadas pelo autor como mentiras de caráter (mentiras caracterológicas) ou mentiras vitais.
Becker afirma que, na infância, vemos a luta pelo amor-próprio na sua fase menos disfarçada e que todo organismo proclama em voz alta as exigências de seu narcisismo. Esse desejo de extensão, esse desejo humano de se destacar, de ser algo na criação, quiçá ser o primeiro no universo, de provar que vale mais do que outra coisa ou pessoa é o que ele designa como “significância cósmica“.
O paradoxo da condição da individualidade dentro da finitude é apresentado por Becker: “O homem tem uma identidade simbólica que o destaca nitidamente da natureza. Ele é um eu simbólico, uma criatura com um nome, uma história de vida. É um criador com uma mente que voa alto para especular sobre o átomo e o infinito, que com imaginação pode colocar-se em um ponto no espaço e, extasiado, contemplar o seu próprio planeta. Essa imensa expansão, essa sagacidade, essa capacidade de abstração, essa consciência de si mesmo dão ao homem a posição de um pequeno deus na natureza, como o sabiam os pensadores da Renascença”.
Para Freud, o homem vive num mundo de símbolos e sonhos, seu narcisismo se alimenta de símbolos. Por isso, sua necessidade de incorporar símbolos e de se expandir neles, o que se constitui em uma forma de imortalidade. Considera-se, assim, que um dos conceitos básicos para compreender a ânsia do homem pelo heroísmo é a ideia de narcisismo, o instinto de sobrevivência e a necessidade de existir.
Cada indivíduo vive uma tragédia pessoal narcísica desde a infância, o que faz com que se preocupe antes de tudo consigo. Mas é também o narcisismo que dá coragem de seguir em frente e de enfrentar os medos e os perigos que se apresentam, inclusive capacitando o indivíduo para o recalque da ideia da própria morte: “nos seus recessos orgânicos mais íntimos, o homem se sente imortal”.
Um dos projetos heróicos mais importantes do humano é a constituição familiar. A esperança dos pais é que o sonho dourado (não realizado) deles seja realizado por seu filho e que este se torne um herói no seu lugar. Todo ser humano leva essa luta em menor ou em maior grau para a vida adulta, moldando-a de acordo com seu controle e com o que é possível.
A Negação da Morte é uma obra viva muito atual, não só, entendo que a visão de Becker está à frente do nosso tempo. Vale lembrar que Becker faleceu dois meses antes de receber o Pulitzer e, por vezes, me pego pensando como e quais seriam as abordagens da obra nos tempos de internet e de redes sociais, na era em que se repensam instituições, os valores, o ser e o saber.
Em uma postagem do Instagram foi usada a seguinte frase: “ter milhares de seguidores no Instagram é como ser milionário no Monopoly”. O interessante é que se tratava de uma autocrítica, pois feita por alguém com milhares de seguidores. Talvez fosse um leve despertar seguido, porém, de mais uma foto anestesiada e esteticamente perfeita de um cappuccino que, ao ser tomado, provavelmente jazia morno ou com gosto do prazer de ontem. Vale ressaltar que as duas possibilidades reais que substituiriam os simbólicos “Instagram” e “Monopoly” seriam formas tidas como sucesso heróico do sujeito comum, a saber: fama e dinheiro.
Pode-se ver as redes sociais como um second life, uma espécie de vida ideal e perfeita, onde o dia está sempre ensolarado, onde sempre é Maya Beach e sempre se é jovem e belo. Filtros especiais para fotografias e vídeos, além de milhares de aplicativos, garantem a construção infalível desse herói sem vulnerabilidades.
Observando-se a crescente movimentação das redes sociais, onde mil likes valem mais que uma mensagem, depara-se com uma experiência que nomeei de “heroísmo nético”. A sociedade sempre forneceu um veículo para diversos graus de heroísmo — desde se tornar Papa, passando por constituir família, ter um carro melhor que o dos amigos do bairro, ter a/o namorada/o mais bonita/o da turma — apresentando histórias heróicas que variam desde o engraxate que virou doutor até um youtuber com um vídeo que atingiu um milhão de visualizações.
Todas essas buscas e motivações são influenciadas por símbolos culturais, papéis sociais ou costumes. Mas, no fim, a esperança do homem é de que toda sua criação tenha “significância cósmica”, valor que seja imortal. Becker dizia que tudo o que o homem faz é religioso e heróico e, portanto, é passível de ser fictício e falível. Pode-se pensar que, nesse ponto, instaure-se um problema do heroísmo e, na vida moderna, isso se revela em buscas “infalíveis” de controle do fracasso.
As redes sociais podem ser uma das válvulas que propiciam a fluidez da “felicidade virtual e instantânea”, do heroísmo nético que, com maior facilidade e controle, esconde a ausência de inteligência, a pouca beleza, a juventude que se esvai, a vida medíocre ou a melancolia. Se por um lado isso me leva a pensar que o investimento libidinal das pessoas no mundo virtual é algo preocupante, por outro me faz pensar que isso talvez seja apenas uma nova condição.
Se a troca do contato real pelo contato virtual, em última instância, pode revelar a solidão humana, seu sofrimento ou sua angústia neurótica, também pode revelar outra coisa. Por serendipidade, empresto a ideia de Michel Serres acerca das revoluções das sociedades ocidentais: a transição do oral para o escrito, a transição do escrito para o impresso e, agora, a transição do impresso para o virtual. Como diria Serres, deu-se a morte do porta-voz, “a oferta sem demanda morreu nessa manhã”. A outra coisa revelada é que as informações estão disponíveis dentro do bolso, ao lado do molho de chaves, de fato e simbolicamente dentro do celular, estão nas nuvens e na chuva de buscas. Com isso, morre um pouco a ideia do porta-voz, morre um pouco o professor, morre, não raro, o interlocutor.
Se observados casais em restaurantes, a qualquer momento, a seguinte cena é tão banal que descrevê-la é quase como tirar uma selfie clássica segurando a Torre de Pisa. Os pratos chegam quentes e são comidos frios. Nesse intervalo morno, o casal fotografa o próprio vazio, que se apresenta como um prato cheio. Centenas de likes nas redes sociais. Nada de afeto entre eles. Vem a sobremesa fria, o café quente, a cena se repete… Em outra hora, vem a conta. As redes sociais foram criadas, em tese, como tentativa de aproximação das pessoas, mas oferecem o contrário: frias relações. Onde o instinto diria “coma”, o projeto heróico diz “fotografe”.
Observamos então um período de aparente desordem, com o fim de pessoas transidas e de bolsos vazios e com a chegada de uma nova ordem de pessoas com os cérebros nas pontas dos dedos. Seria o fim da paideia e o começo de uma nova universidade de formas de se aprender sem apreender? Seria um distanciamento do humano e uma aproximação ao animal multitasking, que se mantém apenas vivo e dispensa o contemplativo-criativo?
Não desarrazoado, lembro-me, a este ponto, do conto A Invenção de Morel, onde Casares descreve uma ilha na qual existe uma espécie de imortalidade gerada por uma máquina e, ao mesmo tempo, uma vida estática de repetição, que poderia ser comparada a um estar morto em vida ou ao mundo virtual da atualidade. A maioria das pessoas vai pelo caminho seguro, repete padrões de heroísmo dos pais, dos patrões, dos heróis virtuais, do que estiver mais perto. Grande parte da sociedade vive dessa maneira, resolve suas questões do modo mais fácil, seguindo um padrão já estabelecido ou já testado por seu modelo heróico corrente.
Vale lembrar que esses mecanismos atuais oferecem ao homem mais do que a própria existência: uma ilusão da infinitude e do sucesso existencial. No entanto, esse mecanismo de conter a angústia pode ser uma estratégia desastrosa, trazendo um vazio existencial muito grande no futuro. Funcionar no automático pode significar viver em uma miséria neurótica. Como aponta Freud, talvez melhor fosse lidar com a miséria humana comum, algo menos fantasioso, menos mutilador e que pudesse quem sabe se desencadear em uma produção mais sublime e mais criativa.
A Negação da Morte me faz pensar na minha própria significância ou insignificância, também me faz pensar em como não é simples viver em uma era de rapidez transicional. Me faz pensar nas diferentes escolhas ou somas das não-escolhas, me faz pensar em coletivo e não individual, me faz distinguir o que é urgente do que é dispensável. Se por um lado Becker nos aponta a finitude e o fracasso existencial, também nos aponta uma saída sublimatória pela produção. André Comte-Sponville, em uma passagem de A Felicidade, Desesperadamente, cita que Camus tinha o dom de dizer coisas graves e fortes como “Os homens morrem, e não são felizes”. Sponville imediatamente acrescenta: “por isso a sabedoria é necessária”.
Texto de Luiz Durante
Ilustração de Beatriz Leite
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