A morte do pai e a morte do meu pai
Se eu fosse deixar alguma coisa sobre o túmulo do meu pai, não deixaria flores; colocaria ali, sobre a pedra simples que escolhemos como sua lápide, o sexto e último volume da série de Karl Ove Knausgård, Minha luta, que ele não chegou a ler.
É um dos livros mais grossos que já li; tenho-o carregado comigo como se não fosse um tijolo de 1.232 páginas, na versão em inglês. Meu exemplar já está com as pontas desbeiçadas, já não para fechado, está sempre com a capa entreaberta; mas para o meu pai eu daria um novo: talvez esperasse sair a tradução em português, assim ele completaria sua coleção (embora eu tenha encontrado na sua biblioteca, depois de sua morte, o quinto volume também em inglês).
Conversávamos com frequência sobre Knausgård, e ele costumava me corrigir quando eu, falando de um dos volumes, mencionava algum episódio ocorrido em outro: “Mas isso está no terceiro volume”; sua voz, em tom calmo, nada acusatório, sem nenhum indício de que estivesse se gabando de sua memória, me dizia que ele precisava simplesmente expor a verdade.
A verdade, tão cara ao próprio Knausgård: é em busca dela, do desvelar-se do que é e como é, que o autor descortina sua vida em tantos detalhes, tantas minúcias, e, entre páginas ensaísticas sobre literatura ou sobre identidade ou sobre o tempo, escreve outras várias em que está dando banho em seus filhos, limpando a banheira para enchê-la de água, fazendo salsichas que ficam esturricadas enquanto conversa com o amigo e as crianças assistem televisão na sala.
Sem se ater a uma ordem cronológica, sem um enredo definido, Minha luta começa com A morte do pai (2009), em que escreve sobre os dias que se seguiram à notícia da morte de seu pai, entremeados com o presente da escrita e com passagens de sua infância e juventude; segue com Um outro amor (2009), que narra principalmente a relação de Knausgård com a esposa Linda, desde a época em que se cortejavam até às dificuldades em lidar com os filhos; continua com A ilha da infância (2009), que passeia pelos anos de infância e adolescência do autor, marcados pela insegurança e pela relação conturbada com a figura abusiva e autoritária de seu pai; ruma, em Uma temporada no escuro (2010), para um pequeno vilarejo no norte da Noruega onde Knausgård trabalha em uma escola e onde se agravam seus problemas com o álcool; segue com A descoberta da escrita (2010), em que suas tentativas e frustrações como escritor são esmiuçadas, assim como suas relações amorosas; e termina com O fim (2011, ainda a ser lançado no Brasil, também pela Companhia das Letras, como todos os outros volumes), que narra a repercussão aos primeiros volumes da própria série, além de retomar o cotidiano exaustivo com os filhos e os problemas no casamento e conta, em mais de 400 páginas, com um ensaio sobre Hitler, na tentativa de justificar o nome provocativo dado à série.
Há quem acuse o escritor norueguês de narcisismo: fazer-se personagem de forma tão inegável, esmiuçar a própria vida, como se ela pudesse ser de interesse de mais alguém, não poderia ser nada além da manifestação espalhafatosa (são mais de três mil páginas) de um ego mais que inflado. Neste sexto volume que tenho carregado comigo, Knausgård reflete, a partir do diário de Gombrowicz, que a exposição, a nudez extrema do eu, é um narcisismo que aspira à verdade. “Por sua nudez, é como se o narcisismo estivesse sendo exposto, e nisso se assenta uma mente consciente, alguém dizendo, eu sei o que estou fazendo” (este e os outros trechos mencionados aqui foram traduzidos do inglês por mim).
Gombrowicz, e também Knausgård, sabem o que estão fazendo. “Eu sei que é narcisista”, continua, referindo-se (explicitamente) a Gombrowicz, “mas estou fazendo mesmo assim. Isso é, não estou me escondendo. Estou contando como as coisas são. Eu sou narcisista na raiz. Mas quem sou eu? Até agora, o eu é todos nós”. Admitir-se narcisista e continuar se expondo seria, então, expor a própria fraqueza; a principal, talvez, por sustentar a estrutura da obra; a fraqueza matriz das tantas outras que ele expõe ao longo dos seis volumes. Talvez essa seja uma das formas de identificação que trazem à leitura uma forte sensação de intimidade: quem lê não tem, na maior parte das vezes, a coragem de se expor tanto assim, mas vê descortinar-se em palavras o que reconhece em si mas nunca conseguiria verbalizar ou admitir.
Nem o próprio autor teria coragem de verbalizar as próprias fraquezas, como algumas vezes repete ao longo da obra, e de fato não as verbaliza: ele escreve. Mas qual seria a diferença? Em algumas passagens, Knausgård revela segredos, menciona situações vexaminosas, confessa culpas que, no evento que as suscitou, ele não havia admitido. É provável que muitas pessoas de seu convívio tenham vindo a saber o que de fato houve em casos antigos lendo Minha luta. Em um episódio narrado no sexto volume, por exemplo, ele observa a felicidade do amigo Geir diante do filho regozijando-se com outras crianças ao tomar banho e percebe, então, que a falta de familiaridade com a rotina infantil, ao invés de ser uma escolha, é uma carência; mas ele não o dirá ao amigo, temeroso de sua reação ou de que ele tomasse aquela proximidade como uma infração. Talvez soe paradoxal escrever sobre algo que, para quem está escrevendo, deveria permanecer secreto; mas aí reside a diferença entre a pessoa e o personagem, entre vida e literatura.
Há quem o acuse de se aproveitar da vida das pessoas ao seu redor, pessoas de sua convivência, amigos e familiares, para escrever; os filhos, por exemplo, que agora já cresceram, têm sua infância devassada, ao alcance de quem quiser ler; Linda, hoje ex-companheira de Knausgård, teve seus problemas psiquiátricos descritos ao longo da série e a repercussão da exposição de sua vida é, em reiterada exposição, narrada no sexto volume. Se por um lado a decisão do autor de dizer tudo traz dilemas éticos — vale mais a obra literária que a saúde mental de sua esposa ou a exibição de seus filhos? —, por outro é onde subjaz o cerne de seu projeto literário. É necessário que não haja limites para se chegar ao “todo” da vida; se sabemos impossível de fato abranger tudo, narrar todos os aspectos da vida de uma pessoa, tornar literatura a própria vida, a marca desse todo, seu rastro, o encalço de sua intenção está justamente no extrapolar os limites — todos, inclusive o ético. Knausgård pondera no sexto volume, referindo-se a ter escrito sobre sua esposa: “Por que eu escrevi aquelas coisas? Eu estava desesperado. Era como se eu tivesse sido trancado dentro de mim, sozinho com minha frustração, um demônio escuro e monstruoso, que em algum momento se tornou enorme, como se não houvesse saída. Círculos cada vez menores. Mais e mais escuridão. Não o tipo de escuridão existencial que era toda sobre vida e morte, felicidade primordial ou pesar primordial, mas o menor tipo, a sombra da alma, o pequeno inferno privado do homem comum, tão insignificante a ponto de nem merecer menção, enquanto ao mesmo tempo engolindo tudo”.
Aí poderia se considerar, além da falta de limites, outro aspecto de seu projeto literário: a abundância de detalhes, pequeno inferno privado do homem comum. De alguma maneira, ambos desembocam no mesmo ponto: a verdade, que não corresponde somente à concepção mais comum de verdade como correlação com a realidade, mas que poderia ser entendida também como desvelamento ou mesmo como verdade literária. Knausgård continua: “Se eu fosse escrever sobre isso eu teria que dizer a verdade”.
Também no sexto volume, ele menciona a acusação de usurpar a vida alheia para escrever —acusação feita de modo explícito pelo seu tio paterno, Gunnar, que o ameaçou de processos e exigiu a não publicação da série, alegando que o sobrinho não apenas ofendera seu irmão, mas mentira a respeito de sua vida e sua morte. É uma reflexão talvez defensiva, pois Knausgård já tinha acesso à repercussão aos livros anteriores: partindo de sua experiência de leitura de Drácula na adolescência, ele argumenta que, “Ao invés de enxergar o escritor como um vampiro sugando o sangue daqueles ao seu redor (…), eu via o escritor como alguém em perigo de perder sua independência, uma pessoa feita refém e paralisada pelo poder de outra, que bajuladoramente age como ela, pálido, sem sangue, e fantasmagórico. Talvez porque eu sempre tive um ego frágil, sempre me senti inferior a todos os outros, em cada situação”.
Algumas páginas antes, Knausgård afirma, acerca de seu projeto literário: “Por mais de três anos eu passei minhas manhãs da mesma maneira, sentado aqui ou em casa no apartamento em Malmo, curvado sobre o teclado, escrevendo este romance, que agora está se aproximando de um desfecho. Eu o fiz sozinho, em recintos vazios, e conforme eu trabalhava, meus editores publicavam o que eu tinha escrito, cinco volumes até o momento, sobre os quais eu sei que houve muita conversa, muito escrito e dito em jornais e blogues, no rádio, em periódicos e revistas. Eu não tive interesse nesse discurso e me mantive longe dele o quanto possível, não há nada ali para mim. Tudo está aqui, no que eu estou fazendo agora. Mas o que é isso exatamente? O que significa escrever? Primeiro de tudo é perder-se, ou perder a si mesmo.” Estaria então, ao escrever, ao contrário de se apossando da vida alheia, perdendo-se nela; e, segundo ele mesmo elabora, isso se daria através da linguagem.
“O eu literário se assemelha ao eu real no sentido que a singularidade do indivíduo pode ser expressa apenas por meio do que é comum a todos, que no caso da literatura é a linguagem.”
A linguagem, por ser comum a todos, operaria a conjunção entre aquele que escreve e aquele a quem se escreve, a quem se torna personagem através da possibilidade elaborativa da própria linguagem. As palavras são as mesmas para todos, mas sua combinação de forma específica faz surgir a voz da autoria, em Knausgård marcada pela clareza, pelo estilo direto, pela reflexão ensaística entremeada por episódios cotidianos banais narrados em uma riqueza de detalhes quase excessiva. Ele termina assim, por exemplo, uma reflexão sobre Hamlet: “A terra aparece para Hamlet como um promontório estéril. O ar (…) é para ele nada além de uma congregação suja e pestilenta de vapores, o homem nada além da quintessência da poeira. Isso é o que ele via ali no castelo. A palavra inglesa vapor é a mesma que era usada para a mente obscurecida, e o espaço que se abre ali, entre o obscurecimento da mente e do mundo, aparece como um abismo”. E, na linha seguinte, sem transição alguma, tira o celular da jaqueta e pressiona o número de Linda, que atende imediatamente. É como se pudéssemos acompanhar o devaneio de que muitas vezes somos autores acontecendo em pleno cotidiano, as ideias como surgem, as coisas como são.
Eu gostava de conversar sobre essas coisas com meu pai; como seria bom, numa tarde de domingo, depois do almoço, no sofá da casa dele, falar do que ando pensando ao ler o último volume, o fechamento da série. Meu pai sabia, tenho certeza, mas talvez eu reforçasse meu agradecimento a ele por ter sido tão diferente do pai de Knausgård, que precisou partir da morte de seu progenitor para sequer conseguir começar a escrever; talvez meus comentários de surpresa ao volume três, em que a violência com que o pai trata o filho é explicitada com mais veemência, já tivessem deixado subentendida a minha gratidão.
Meu pai leu cada um dos cinco primeiros volumes antes que eu; talvez por isso agora hesite tanto em devorar o sexto como fiz com os anteriores.
É muito difícil ter que ultrapassá-lo.
Natália Timerman é escritora, psiquiatra e psicoterapeuta, com mestrado em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo. Atualmente, é doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada nessa mesma universidade.
Imagem: ‘Towards the Forest II’ (1897/1915), pintura de Edvard Munch. Fotografia do Munch Museum (Oslo, Noruega).
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