O britânico Peter Greenaway é pintor e cineasta, um multiartista que se inspirou intimamente na obra do russo Sergei Eisenstein. Greenaway afirma que Eisenstein é o maior cineasta de todos os tempos, com a mesma reputação que se daria a Shakespeare no plano da literatura, ou a Beethoven no plano da música.
Segundo Eisenstein, uma obra só poderá se tornar orgânica e atingir as condições supremas do orgânico, se seu tema, seu conteúdo e sua ideia forem inseparáveis dos pensamentos, sentimentos, do modo de ser e da própria existência do autor. O orgânico nessa concepção não é apenas o princípio orgânico em si mesmo, mas também a lei causal, segundo a qual se ordenam os fenômenos da natureza. Ou seja, temos diante de nós uma obra de arte — uma obra artificial — que é estruturada pelas mesmas leis que regem a estrutura dos fenômenos não-artificiais, orgânicos, da natureza.
O interesse de Eisenstein é centrado naquilo que ele chama de a “psicologia humana” ou a estrutura da emoção humana. Não se trata, porém, da procura de suas constituintes imutáveis, de sua essência profunda: o que ele visa são os mecanismos dessa estrutura que o artista, à diferença de tantos outros homens, saberá captar em sua arquitetura e seu efeito, e repropor em sua obra.
Para isso, propõe uma composição, ou sobreposição de quadros, ou tomadas que provoquem uma mobilização de afetos que tire o espectador de seu estado habitual, isto é, que saia de si mesmo. Sair de si mesmo deve significar necessariamente a passagem para alguma outra coisa, de qualidade diferente ao que precede. Pode-se dizer que a ação de mobilização consiste em levar o espectador a um estado de ex-stasis. Quem estava sentado levantou-se; o imóvel pôs-se em movimento; o silente gritou; o seco tornou-se úmido.
A montagem, como qualquer obra de arte acabada, deverá ascender a altos graus intelectuais da consciência e, simultaneamente, penetrar, através da construção da forma, nas camadas do mais profundo pensamento sensorial.
Segundo Greenaway, o cinema apresenta uma trajetória decepcionante e o que temos, em geral, são histórias de ninar para adultos, que copiam o teatro e arranjam os enredos nas livrarias. Ele cita Picasso: “Não pinto o que vejo, pinto o que penso”. Baseado em Picasso e Eisenstein, pensa em um cinema de recriação.
Fascinado pela câmera cinematográfica e pelas possibilidades de montagem, questiona: por que deveriam os cineastas se ater aos limites impostos pela literatura, pela linguagem e pela narrativa? Por que não romper com toda forma, de toda prosa, e fazer poesia com imagens resgatando a experiência dos sonhos e alçando o espectador a novos voos, a novas experiências de percepção?
As imagens sequenciais deveriam, para ele, obedecer a novas prerrogativas que não a constituição narrativa, já que a estrutura da literatura amarrava a liberdade necessária ao cinema para que este acontecesse como arte autônoma.
Greenaway busca um cinema de ideias, enfatizando a noção de discurso entre fenômenos normalmente não associados. Acredita que a origem, a centelha, o germe, o próprio início de uma associação que tente manifestar algo no cinema precisa começar com uma ideia. Tal ideia pode ser profunda ou efêmera, ou ainda, de um modo bastante típico, pode ser a ressurreição de uma ideia já formulada há mil anos, como no caso da obra da escritora japonesa Sei Shônagon, que inspira o filme O Livro de Cabeceira (The Pillow Book, 1966).
Eisenstein dizia a seus alunos que a arte não se reduz ao registro ou à imitação da natureza; que arte é conflito; é a escritura dos sonhos sonhados pelo artista; que arte é a representação de um fenômeno e a compreensão e o sentimento que temos do fenômeno representado. É uma representação que toma os elementos naturais do fenômeno representado e cria, com eles, a lei orgânica da construção da obra; é o conflito entre a lógica da forma orgânica e a lógica da forma racional.
Para conseguir voar, o homem teria estudado atentamente o movimento das asas dos pássaros e, ao dar-se conta das múltiplas funções que elas desempenham durante o voo, que as asas funcionam ora como hélices, ora como superfícies planares, dividiu essas funções em diferentes partes, criando para cada uma delas uma parte em separado e, através da montagem dessas partes numa outra ordem, inventou o avião. Para criar uma obra de arte, para conhecer e transformar a realidade através da arte, Eisenstein argumenta que o homem trabalha assim como trabalhou para inventar o avião.
O cineasta russo não se referia apenas ao trabalho de juntar pedaços de filmes numa certa ordem, nem mesmo, num sentido mais amplo, apenas à ideia que organiza a composição de cada um desses pedaços e a inter-relação/colisão entre eles para formar o sentido do filme. Para ele, o pensamento humano é montagem; a cultura humana é o resultado de um processo de montagem onde o passado não desaparece e sim se reincorpora, reinterpretado, no presente.
Nessa proposta de Eisenstein, para voar com os pensamentos, o homem inventou o cinema.
Greenaway enxerga uma similaridade entre a pintura e os planos de imagens e reencontra a essência do cinema na pintura. Também podemos observar em sua obra o contrário: as estratégias da pintura influenciando o cinema. Cada célula da montagem é uma pequenina moldura retangular dentro da qual existe, organizado de certo modo, um fragmento de acontecimento. Argamassadas, esses fragmentos formam uma montagem. Quando isso é feito num ritmo adequado, formam um fenômeno de outra natureza, da mesma forma que um agrupamento de células promovem um salto dialético e compõem um embrião. Por exemplo, as tomadas do casamento da protagonista Nagiko em O Livro de Cabeceira: o desfile em carro aberto do casal estático, a procissão da imperatriz em um ritmo fúnebre, o casal no leito conjugal terminando um coito apressado… os esplendores e o desengano. A impossibilidade de nascer nesse contexto, a súplica para que o marido desse continuidade ao ritual do pai, tudo isso sendo expresso pela montagem, muito além da narrativa.
O trabalho clínico do psicanalista também pode ser concebido dentro desse vértice: múltiplos quadros dentro de uma sessão, bem como múltiplas sessões dentro de um período de tempo, compõem um estado mental. Agrupados de uma certa forma promovem um flash emocional, uma ponte que permite um salto para um outro estado mental.
Seguindo a influência recebida dos estudos dos ideogramas japoneses, o conflito entre duas imagens sugere relações estruturais entre ambas. O sentido não está na soma das imagens, mas na relação. Por exemplo, a junção de dois hieróglifos simples deve ser considerada não como a soma de ambos, mas como o seu produto. Cada desenho diz respeito a um objeto ou fato, mas sua combinação dá origem a um conceito. O exemplo clássico mencionado por Eisenstein: o desenho representando água combinado ao desenho representando olho gera o conceito “chorar”.
Segundo Eisenstein, esse pensamento não é uma característica específica do cinema e sim do ser humano, que ao deparar-se com dois fragmentos, dois fatos, dois planos, duas palavras ou dois sons faz automaticamente uma síntese dedutiva dos elementos justapostos e os reduz a uma unidade. É um fenômeno universal.
Os haicais orientais, para o cineasta russo, pareciam ser a tradução mais fiel, na literatura, daquilo que significava a verdadeira montagem cinematográfica: a passagem do “pensamento por imagem” ao “pensamento intelectual”.
Como o haicai de Matsuo Bashô:
Foi para a casa do vizinho
Não para minha
O guarda chuva tamborilante.
Nesse haicai, a expressão da melancolia é marcada pelas imagens de um dia chuvoso e pela ânsia de quem observa atentamente a aproximação de alguém e se dá conta de que não é a pessoa esperada. Uma montagem a partir de planos independentes, formando uma nova ideia a partir da fusão, da colisão, construindo uma ordem não igual à natureza, mas sim igual à natureza dos homens: como se fosse uma escrita do sonho. O cinema, com a montagem, voltava-se para o sonho, para o inconsciente, para as formas primitivas da representação através de imagens, restaurando a elas sua importância primeira.
Em O Livro de Cabeceira, Greenaway propõe a arte de ordenar o caos, acreditando que todos nós, como catalogadores que somos, precisamos colocar as coisas em suas caixas, precisamos organizar e etiquetar as coisas, precisamos nomeá-las para compreendê-las.
Nagiko é o fio a partir do qual Greenaway ordena elementos como erotismo, morte, pintura e literatura. Ainda que muito dos seus filmes falem sobre categorização, sobre encontrar um lugar na ordem das coisas, sempre há um modo de criar um encerramento a dizer: cuidado! Por mais perfeito que você considere seu sistema, ele é profundamente falho. O alfabeto, a política, a religião, até mesmo a ciência é uma mera conveniência, profundamente imperfeita e, claro, bastante absurda para nos ajudar a compreender o caos.
Texto de Miguel Marques
Ilustração de Beatriz Leite
0 Comments