O silêncio da quarentena é diferente. Talvez ainda faltem as metáforas necessárias para encaixar o coronavírus ou a Covid-19 ou a Sars-CoV2 na vida, no cotidiano, mas o vírus está aqui. Em Doenças e suas metáforas e em Aids e suas metáforas (Companhia das Letras, 1978 e 1989, respectivamente), Susan Sontag diz que quando estamos diante de uma pandemia em que não há perspectivas imediatas de descobrir vacina ou cura, a prevenção é essencial. Nesse momento, a medida preventiva mais eficaz é ficar em casa. O melhor movimento é ficar parado.
O decreto de pandemia pela Organização Mundial de Saúde mudou o silêncio. É como se uma bomba tivesse caído logo ali e a explosão deixasse um forte zumbido em algum lugar entre a consciência e o ouvido. Desde então, seguimos em meio à fumaça e poeira. Por mais dramático que pareça, o uso de metáforas militares para falar de doenças é comum. Acontece que numa pandemia nossos corpos estão além de um campo de batalha. Somos todos pacientes.
Sontag explica que, etimologicamente, paciente quer dizer sofredor. Sofre quem espera em casa, sofre quem adoece, sofre quem morre e sofre quem fica. O que muda é quão degradante é o sofrimento. Faz muito sentido as analogias entre o Covid-19 e o neoliberalismo. Quem há de negar que as fronteiras entre ricos e pobres sejam mais protegidas que as fronteiras entre pessoas sadias e doentes?
Pacientes esperam. Pacientes sofrem. Impacientes reclamam que outros impacientes morrem por desrespeitar a regra de ficar em casa. Sair quando se pode permanecer ganhou significado de transgressão, ato político, irresponsabilidade, estupidez ou suicídio. Seja qual for o entendimento, a grande questão é que a pandemia tornou a morte pública e banal. Toda luta contra o vírus se passa dentro do corpo, mas quando são exibidas as valas comuns nos Estados Unidos, os caminhões cheio corpos atravessando as ruas da Itália ou as pessoas colocando seus cadáveres nas calçadas do Equador fica evidente que nem sempre é preciso ser contaminado com o vírus para não respirar direito. A morte é para todos. A dignidade, não.
Longe de revelar nossa fragilidade individual, o vírus expôs nossa fragilidade coletiva e derrubou conceitos que nos pareciam tão concretos. Minha percepção do tempo mudou tão violentamente quanto minha percepção de solidão e silêncio. Câncer, tuberculose e Aids são doenças carregadas de significados e metáforas sociais. Assim como a gripe, que sequer é considerada doença tamanha sua vulgaridade e sua banalidade. Que tipo de gripe é essa que é ridicularizada por uns e tão temida por tantos? As doenças que mais causam terror são as consideradas não apenas letais, mas também desumanizadoras, como é desumanizador o medo paralisante de um vírus.
A definição de pandemia não depende de uma quantidade de casos registrados, mas da agilidade com que ele se espalha no mundo, da disseminação. Confesso que estou me controlando para não falar do termo viralizar e tornar esse texto um desabafo cínico e sádico sobre nosso modo de vida. O termo pandemia raramente é usado para evitar pânico ou ansiedade, mas é preciso considerar que há tempos estamos imersos nesses dois sentimentos. Isolados ou distanciados, nos resta agora aprender as novas regras até que um novo “normal” seja criado. Mas somos pacientes.
Fabrina Martinez é jornalista, escritora e mediadora do Leia Mulheres na cidade de Marília (SP). É mestre em Literatura pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.
Imagem: colagem de Michael Paukner.
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