Quando pensamos em uma mulher grávida, muitas vezes a representação que nos vem a mente é a de plenitude. Vale lembrar que, para Freud, o complexo Édipo feminino tem como consequência o desejo de ter um filho. Para ele, essa seria uma das saídas da situação edípica — o que torna a experiência da gestação bastante carregada de afeto e de energia psíquica. A gestação seria, então, o início da realização de um árduo desejo infantil.
Mas algumas gestações, ou quase todas em graus distintos, são acompanhadas de angústias, expectativas e também de frustrações. O corpo da mulher deixa de ser dela e passa a funcionar sem controle. O real do corpo surge de maneira violenta e implacável. As vivências são muito particulares e distintas de mulher para mulher. Neste texto, tentarei por em palavras e elaborar um pouco da minha experiência como psicanalista, mulher, mãe e gestante.
No momento em que começo a escrevê-lo, estou em minha segunda gestação. Tenho uma filha de três anos que é a alegria da minha vida… mas ter um bebê crescendo dentro de meu corpo não é um evento simples. A castração é o corpo nos contando de sua pequenez frente aos nossos desejos. Nessa segunda gestação, como na primeira, o repouso se fez necessário mais uma vez, anunciando que não tenho o menor controle sobre meu corpo, seu funcionamento e suas dificuldades. As náuseas e vômitos vieram a cavalo e me lembraram que sou humana e limitada. Mais uma vez, me vi plena e ao mesmo tempo absolutamente castrada. Castrada em minha possibilidade de ser mãe, de trabalhar, de cuidar, e pasmem — de amar.
E é assim que a máxima freudiana surge impiedosamente nos fazendo observar a balança libidinal no seu pêndulo constante. Podem me perguntar: mas você não quer estar grávida? Minha resposta será: sim, quero, somente não desejava estar apenas grávida.
A sensação de depressão começou a entrar em cena: me sentia desvitalizada, permeada por desconfortos. Como nos fala Andrew Solomon em O demônio do meio-dia: “A depressão é a imperfeição no amor… Quando ela chega, destrói o indivíduo e finalmente ofusca sua capacidade de dar e receber afeição”.
A cada gestação, meu corpo me lembra que é ele quem dita as ordens; a hiperemese gravídica, mal que me acomete, é cruel. Aos poucos o horror começou a ficar menos gritante, mas o desprazer vivido internamente estava em absoluto presente. Foi então que, em uma sessão de análise por telefone (sim, por telefone, afinal andar do sofá até a cama era quase como subir ao topo do Everest), minha analista me sugeriu o filme Olmo e a Gaivota (2015).
Apesar de apreciar muito o trabalho da Petra Costa em seu filme anterior, Elena, não tinha assistido ao título sugerido. Aproveitei meu estado vegetativo (vejam só, agora ele se transformara em possibilidade e isso já abria uma fenda importante) e fui vê-lo imediatamente. O que se produziu foi um encantamento pleno. Me vi representada, saí de minha solidão narcísica. Havia uma pessoa/personagem que compartilhava comigo de sua angústia, sua pequenez frente à vida.
Olmo e a Gaivota conta a história de Olivia — uma atriz de teatro que engravida no momento em que a peça que encenava — A Gaivota, de Tchekov—, deveria sair em turnê pela Europa. Os meses de gravidez se desenrolam como uma espécie de rito de passagem, confrontando Olmo com suas questões mais profundas. A ânsia por liberdade e sucesso profissional da protagonista precisa se deparar com as limitações de seu próprio corpo. Olivia vê no espelho as duas personagens femininas de A Gaivota. São como duplos, reflexos inquietantes de si mesma: Arkadina, atriz que está vivendo o dilema do envelhecimento, e Nina, atriz que enlouquece. No filme, o que parece encenação se revela como a própria vida, ou seria o contrário? Essa questão convida a pensar sobre que é real, o que é ficção e, mais, sobre o que sacrificamos e o que celebramos em nossas vidas.
A arte serve para isso, não? Ela nos tira de nossas fortalezas e nos possibilita compartilhar experiências, nos faz sentir acompanhados e representados. A cada argumentação de Olivia, sentia-me mais e mais acolhida, e menos desumana, menos infeliz, menos castrada.
A identificação parece ser um dos elementos centrais naquilo que nos toca. Lembrei que, anos atrás, fiz um trabalho com prostitutas marginalizadas e, no encerramento desse ano, fui com elas a uma peça de teatro. A peça era constituída por alguns monólogos, entre eles o de uma mulher que fazia programas. Apesar da tragédia contida em sua fala, essas mulheres gargalhavam. Pareciam se ver representadas, acolhidas, estavam identificadas com a dor e com a alegria daquela jornada tão particular. Aquilo que pude observar em meu trabalho profissional, pude também experimentar emocionalmente frente ao filme. Olmo e a gaivota me amparou. Poderíamos falar que foi uma espécie de abraço psíquico num momento de solidão e sofrimento.
Apesar de todo mal estar vivido, a gestação se encerrou de forma magnífica — ao menos para mim. Afinal, é disso que trata o meu texto: compartilhar a minha experiência íntima. A plenitude relatada por Freud se faz presente no encontro com esse ser que surge quebrando barreiras, se apresentando de maneira nova e se fazendo conhecer com suas singularidades.
Diz-se que o nascimento de um bebê é o nascimento de sua mãe, não importa quantos filhos essa mãe tenha. Se por um lado, a plenitude não nos salva da mazela de sermos humanos, de outro, ainda quero celebrar a vida.
Gabriela Malzyner é psicanalista e Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP.
Ilustração de Celeza Ramalho
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