Robinson Crusoé é o caso da personagem ficcional marcante que faz seu autor ficar discretamente à sombra. Algo me diz que o protagonista náufrago vem mais rapidamente ao imaginário das pessoas do que o próprio Daniel Defoe, seu criador. Publicado na Inglaterra em 1719, o livro foi escrito e lançado em inglês corrente, informação que hoje pode ser uma simples anedota. Contudo, 300 anos atrás, significava que o leitor não precisava de uma formação erudita em grego ou latim para compreender a obra em sua integridade. É anacrônico falar em best-seller no século 18, mas a obra de Defoe é o mais próximo que temos disso naquela época.
O próprio autor não veio de uma classe aristocrática, que educava sua juventude com uma base forte de estudos clássicos. Filho de um presbiteriano vendedor de velas, Defoe (nascido Foe, colocou o De mais velho para ficar chique) foi educado para ser ministro da igreja, mas virou um comerciante, navegando por países da Europa. A semelhança dessa história com a de sua personagem não é aleatória. Como vítima de seu próprio tempo, como todos nós, o escritor apontou involuntariamente para tendências filosóficas que dominaram a produção literária inglesa, em especial o romance. Entre elas, estava o individualismo.
Neste contexto, individualismo não é sobre ter práticas egocêntricas. É a característica de uma sociedade regida pela ideia de independência do indivíduo em relação aos outros e à tradição. A narrativa de Defoe não é uma rede de histórias que se entrelaçam. É um herói, uma jornada, subjetiva e íntima, baseada na autobiografia da personagem (algo que hoje a publicidade resolveu chamar de “autoficção”). Defoe desenvolveu sua narrativa a partir da sua própria concepção de uma conduta aceitável das personagens. Desse modo, apontou para uma nova característica da ficção: a subordinação do enredo ao modelo da memória autobiográfica.
Por meio da caracterização da personagem e apresentação do ambiente, a particularidade da descrição se tornou parte essencial da história narrada. Isso é evidente logo no título original da obra (A vida e as estranhas e surpreendentes aventuras de Robinson Crusoé, de York, marinheiro) e seu subtítulo (“que viveu vinte e oito anos totalmente só numa ilha não habitada na costa da América, próximo à embocadura do grande Rio Orenoco; e que foi lançado à praia em virtude de um naufrágio, em que todos os homens pereceram exceto ele mesmo. SEGUIDO de um relato sobre como ao final foi estranhamente libertado por piratas. ESCRITO POR ELE MESMO”).
Claro que antes de Robinson Crusoé personagens tinham um nome e aspectos de sua vida apresentados. Porém, essa prática estava muito mais ligada à ideia de personagem arquetípica. Antes da ideologia de autonomia do indivíduo, a personagem no mundo tradicional não era concebida como autônoma, mas como um elemento de um quadro coletivo. A especificidade de Crusoé criou uma imagem vívida no imaginário popular, o marinheiro europeu que se aventura pelo mundo, naufraga na costa tropical e vive em uma ilha deserta.
Ficou para trás
Diferente das histórias tradicionais, o enredo de Robinson Crusoé não é inspirado em episódios da História, da Mitologia ou de lendas. A primeira linha do romance se dedica a individualizar sua personagem principal: “Nasci no ano de 1632, na cidade de York, de boa família, mas não daquela região, pois meu pai, sendo forasteiro de Bremen estabelecera-se primeiro em Hull”. Trata-se de uma personagem individual, em uma circunstância particular. Há uma quebra com o modelo clássico da tradição grega, que se baseava na divisão dos gêneros literários, divididos entre elevado e baixo. A tragédia era dedicada aos grandes temas, com personagens “superiores” às pessoas comuns, como reis, rainhas, heróis, deuses, musas. A comédia era reservada às pessoas e temas mais comezinhos. Defoe inaugura na Inglaterra uma abordagem que aproxima o leitor do ser moral, interior, do homem comum.
Em seu livro a A ascensão do romance, o crítico britânico Ian Watt comenta que o filósofo René Descartes contribuiu para a “concepção moderna da busca da verdade como uma questão inteiramente individual, logicamente independente da tradição do pensamento e que tem maior probabilidade de êxito rompendo com essa tradição”. O romance é a forma literária que reflete essa reorientação individualista, em que o critério é a fidelidade à experiência individual. Por narrar experiências únicas e, portanto, novas, o romance é o modelo literário de uma sociedade que dá um valor inédito à originalidade.
Ao invés de olhar para o passado, o enredo pinça fatos da história contemporânea das personagens. Um exemplo surge no primeiro capítulo de Robinson Crusoé. Na tentativa de convencer Crusoé a ficar na Inglaterra, seu pai faz um discurso explicando os benefícios de uma vida mediana, sem as misérias e ambições das pessoas das classes superiores e inferiores. Finaliza sua fala usando como exemplo seu filho mais velho, que não seguiu seu conselho, se alistou no exército e morreu na guerra contra os Países Baixos. Nesse relato existe um detalhe banal, mas que faz toda a diferença. A Inglaterra do século 17 havia guerreado com os holandeses, ou seja, uma personagem ficcional aparece ancorada em um fato contemporâneo. A estratégia aumenta a sensação de realidade, ou melhor, de realismo.
O porquê de ser
Em sua crítica, Watt aponta duas causas para a corrente individualista, em especial na Inglaterra e nos Países Baixos, que começavam a desenvolver uma classe burguesa em meados do século 17: a difusão do protestantismo e o capitalismo industrial moderno. Com a onda protestante, a igreja vai deixando de ser mediadora entre o homem e Deus, criando a concepção de uma religião na qual cabe ao indivíduo a responsabilidade sobre sua orientação espiritual. Cabe a cada cristão colocar em sua balança moral interna o que fez de bom, de ruim, de justo e de injusto. Se Deus tudo vê e tudo ouve, a prática religiosa não precisa de intermediário e pode ser feita intimamente.
Obviamente, o autoexame moral religioso não nasceu com o protestantismo, mas ele sistematizou na Inglaterra “essa forma de introspecção espiritual, transformando-a no principal exame religioso tanto para o leigo, quanto para o sacerdote”. O puritano protestante examinava seu íntimo para saber seu lugar no plano divino, se estava no espaço da danação ou da salvação, sempre observando suas decisões individuais. Por esse motivo, Watt afirma que, na Nova Inglaterra, todo puritano letrado tinha uma espécie de diário.
Como homem de seu tempo, Crusoé, nos 28 anos que esteve na ilha, usou bastante sua balança moral interna e uma de suas preocupações era manter um diário organizado. Essa noção de tempo cronológico se mostra ao longo de toda a narrativa. A aventura tem data para começar (1º de setembro de 1651, quando Crusoé embarca em seu primeiro navio, aos 18 anos), sabe-se que o navio naufragou na costa na Venezuela em 30 de setembro de 1659. O náufrago deixa a ilha em 19 de dezembro de 1686.
A prática do diário puritano tem grande influência no romance inglês e aponta para a importância que o tempo ganha para a narrativa. Se a narrativa clássica mostrava a vida através dos valores, com uma moral da história, a narrativa moderna traz a vida através do tempo, à procura do sentido da vida. No mundo moderno, não há espaço para a experiência transcendental; surge a necessidade da busca pela “essência” das coisas e também a incapacidade de encontrá-la. Toda a ação do romance é uma luta contra o tempo. Não à toa, quase 200 anos depois, Marcel Proust dedicaria sua vida a escrever sete volumes que tratam justamente sobre isso: Em busca do tempo perdido.
Surge no romance a ideia de querer juntar fragmentos para “dar sentido” à história, como acontece, em alguma medida, com o diário. Para impactar o leitor, o estilo romanesco passou a usar episódios circunstanciais, com cenas da vida cotidiana e personagens baseadas em pessoas comuns. A literatura cristã, diferente da clássica, apresenta a história de seres humildes de maneira séria, às vezes, até sublime. A ideia igualitária do puritanismo estimulou não só o indivíduo a encarar problemas cotidianos como grandes questões, mas também gerou uma forma literária para a descrição de tais problemas. Watt diz que o herói de Defoe está no “plano das bondades e das maldades comuns”, ou seja, trata-se de um herói mais próximo da escala humana. Ele não almeja a honra do campo de batalha e seu plano moral está situado na rotina.
Evangelho do trabalho
Os calvinistas alienaram seus fiéis de um dado bíblico: o trabalho é o castigo que Deus deu aos homens, após o pecado cometido por Adão e Eva no paraíso. Ao invés de focar na parte do castigo, eles preferiram abordar a administração dos dons divinos. Aqui, o individualismo puritano ganha seu caráter econômico, muito antes de Adam Smith. A balança moral interna passa a pesar também perdas e ganhos, em termos de bens materiais. Isso se mistura à tendência do puritanismo de ver cada experiência pessoal como um indicador das vontades da Providência Divina. Para Crusoé, se ele encontra sementes de milho e arroz para plantar, foi porque Deus quis. Se fica doente com uma febre tropical que dura dias, também.
Assim, a ideia da contabilidade das coisas ganha uma dimensão importante na história. Em Robinson Crusoé não se sabe qual a cor do pôr-do-sol, das árvores, do mar, não há descrições de paisagens, como se o protagonista fosse totalmente indiferente à experiência estética. Mas se sabe com detalhes a quantidade de insumos que há na ilha, quantos sacos de cevada, quantas caixas de pólvoras, o tamanho do terreno usado para criar cabras. A natureza é subjugada, a ilha só é especial porque Crusoé se torna senhor daquela terra, seu colonizador.
No limite, pode-se pensar que o que está em jogo é sua realização pessoal, ou ainda, seu estilo de vida. A discussão com o pai, no primeiro capítulo, não gira em torno do dever filial, mas se trata do que é mais vantajoso, ir ou ficar. Suas viagens pelo mundo são estimuladas pela sua vontade de ascender socialmente e lucrar com seus negócios (sabe-se até com quantas libras o protagonista começa e termina o livro). Em sua passagem pelo Brasil, onde constrói um engenho de cana, Crusoé pretende navegar para comprar escravos negros escondido da coroa portuguesa. Ao embarcar para seu novo investimento, seu navio afunda.
Entretanto, o naufrágio é seu grande triunfo, porque ele se torna herdeiro único dos restos de um navio em uma ilha deserta. Lá, ele vive o sonho da civilização moderna: a absoluta liberdade econômica, social e intelectual do indivíduo, onde não há obrigações familiares ou autoridades civis. Trata-se de uma autarquia pessoal, a utopia capitalista. Para esse efeito, Defoe opta por ignorar efeitos reais da solidão, como a loucura ou a inanição. Nesse aspecto, o herói personifica a mentalidade imperialista do europeu daquela época, mostrando-a como algo positivo.
Isolado na ilha, Crusoé vive sua ideologia. O afastamento de outros seres humanos não se mostra uma questão mais relevante do que a quantidade de uvas passas. Entende-se que laços sentimentais se estabelecem com pessoas que podem gerar bons negócios. As relações pessoais têm menos importância, principalmente o sexo, por se tratar de um fator irracional profundamente presente na vida humana, encarado como uma grande ameaça aos objetivos racionais. Tanto que Defoe, com Robinson Crusoé, se torna um antagonista do amor romântico, com um livro totalmente privado de cenas de sexo ou romance.
Na ilha, o protagonista reza por companhia, embora não peça uma companheira, mas um escravo (e é atendido, ao salvar Sexta-Feira de um ritual canibal). O episódio de seu casamento ocupa algumas linhas, seus filhos não têm nome, o encontro com duas irmãs depois de 28 anos não o comove. Neste sentido, o efeito real da religiosidade de Crusoé em seu comportamento é mínimo. Suas preces são apenas um ritual diário, não relacionado às indagações religiosas. A descontinuidade entre religião e ação do romance é mais evidente em situações como quando Crusoé até se faz passar por católico quando é preciso. Mas só Deus poderia julgar seus atos. Através da introspecção e da observação, Robinson Crusoé constrói o próprio esquema pessoal de convicções morais. Assim, como bem pontua Ian Watt, Daniel Defoe herdou tudo do puritanismo, menos a fé.
Camila Régis é redatora, repórter e estuda Letras (Português-Alemão) na Universidade de São Paulo.
Ilustração de Celeza Ramalho
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