A ausência da mãe nos diários de juventude de Virginia Woolf
“[…] fomos levados para o quarto. Acho que velas estavam acesas; e acho que a luz do sol estava entrando. De alguma forma, eu lembro do espelho; com gavetas em cada um dos lados; e do lavatório; e da grande cama em que minha mãe estava. Lembro muito claramente que enquanto eu era levada para o lado da cama percebi que uma enfermeira chorava, e me veio um desejo de rir, e eu disse para mim, como frequentemente tenho feito em momentos de crise desde então, “Eu não sinto nada”. Então eu parei e beijei o rosto da minha mãe. Ele ainda estava quente. Ela havia morrido momentos antes.”
Julia Stephen, mãe de Virginia Woolf, morreu em 5 de maio de 1895 de complicações de uma febre reumatoide, aos 49 anos. Virginia tinha apenas 13 e, aparentemente, não sentiu nada. Logo após a morte de Julia, a casa da família se encheu de amigos e parentes, pessoas que apareciam para consolar o viúvo Leslie Stephen. Mas, em verdade, foi o sofrimento dele o que mais encheu a casa. Um sofrimento tamanho que parecia não haver espaço para os sentimentos de Virginia e seus irmãos, talvez por isso ela se lembre de não ter sentido nada. O trecho acima, traduzido por mim, pertence a “A sketch of the past”*, um ensaio autobiográfico escrito por Woolf entre 1939 e 1940. Neste momento da vida, Virginia busca escrever suas memórias. Fala, então, sobre a morte da mãe, delineia cenas envoltas a essa lembrança, expõe emoções. Contudo, se voltamos no tempo e nos debruçamos sobre os seus chamados diários de juventude, encontramos um cenário consideravelmente diferente.
Seja porque talvez, de alguma forma, algo tenha, sim, sido sentido; seja por se encontrar em um ambiente submerso em um luto sufocante provocado pelo pai — uma casa com cortinas sempre fechadas, iluminada por luzes artificiais, uma atmosfera silenciosa e abafada com ares de irrealidade, diz Herbert Marder em A medida da vida (2011); seja por outro motivo, ou pela união desses, pouco depois da morte de Julia, Virginia sofre seu primeiro colapso nervoso. Os diários de juventude, que são um conjunto de sete cadernos preenchidos de maneira intermitente, começam a ser escritos dois anos após esse turbulento período, em 1897 — e se estendem até 1909.
Assim, em um primeiro momento, antes de percorrer as passagens do diário de 1897 e conhecendo um pouco sobre a vida de Woolf, sabendo da morte prematura da mãe, não parece estranho que esperemos encontrar nas páginas desse caderno íntimo anotações a respeito de Julia, trechos que retomem o que foi sentido, ou não sentido, após a sua morte. Mas a jovem Virginia, que vive então seus 15 anos, frustra todas as nossas possíveis expectativas.
Dia após dia, entrada após entrada, o que é encontrado nas páginas desse diário é um apagamento da figura da mãe. Virginia não fala sobre Julia, sobre sua partida ou sobre como foi o luto que se seguiu. Tampouco existem descrições de algo que ela tenha feito em seu dia que pareça trazer à sua mente a figura da mãe. Hermione Lee, biógrafa de Virginia Woolf, comenta que nas páginas do diário de 1897 Julia Stephen se torna presente pela sua ausência. Ela é excluída de maneira tal que se torna impossível não pensar nela durante a leitura.
Em verdade, existem ao longo das páginas do primeiro dos cadernos de juventude algumas alusões à Julia. A maioria dessas, porém, é feita de maneira bastante indireta, em ocasiões de visitas feitas ao seu túmulo. E essas referências se mostram tão veladas que só conseguimos compreendê-las se conhecemos detalhes muito específicos, como o nome do cemitério em que ela foi enterrada, “Highgate Cemetery”. Só assim, por exemplo, ao ler na entrada de seis de janeiro de 1897 “Adrian, Thoby e nosso pai foram ao Highgate” é possível saber que se fala da mãe. Aliás, o termo “mãe” chega a ser utilizado por Virginia no diário, mas apenas duas vezes, e em ambas ela novamente apenas se refere ao lugar em que Julia foi enterrada, não existindo nenhuma menção a qualquer sentimento.
Nos diários de juventude, a trajetória de silêncio de Virginia a respeito da mãe é lentamente quebrada com o passar do tempo. Em passagens escritas entre agosto e outubro de 1905, a imagem de Julia é trazida à tona com um pouco mais de clareza. Nelas, Virginia conta acontecimentos de uma viagem que ela e os irmãos fazem à Cornualha, região onde costumavam passar férias antes da morte de Julia, e para qual não haviam retornado desde então. Os trechos desse período são permeados por uma atmosfera de nostalgia, na qual presente e passado se mesclam constantemente. Nesse movimento, Virginia preenche suas entradas com lembranças de situações da sua infância, com um misto de receio e ansiedade pelo reencontro com lugares que costumava ir. E a jovem acaba por transpassar a figura da mãe, ao narrar encontros com pessoas que a conheceram e a admiravam. Assim, Virginia conta com certa satisfação como os moradores da região se recordam dela como uma mulher boa, caridosa, exatamente como ela gostaria de ser lembrada, “me parece o mais puro tributo que pode ser prestado à nobreza de uma vida que não buscou por outra fama”. Mas, apesar de vislumbramos contornos de Julia e de pensamentos de Virginia sobre a mãe, seguimos sem contato com emoções mais profundas.
Em páginas que não as dos diários de juventude, no correr dos anos, como vimos, Virginia Woolf escreverá mais sobre a mãe, sobre a perda da mãe. Descreverá em diferentes momentos a cena da despedida. Falará sobre o quanto sua vida e dos irmãos foi afetada por essa morte. Pensará em como seria se isso não tivesse acontecido. A morte da mãe será trabalhada também em alguns de seus textos ficcionais. Tudo isso nos mostra que apesar de Julia não preencher as páginas dos primeiros escritos íntimos de Virginia, apesar de nelas ser silêncio, ela constantemente permeou os pensamentos da filha ao longo da vida. E talvez caiba dizer que Woolf afirma só conseguir se desvencilhar do fantasma da mãe ao escrever Ao farol (1927):
“É inteiramente verdadeiro que ela me obcecou, a despeito do fato de ter morrido quando eu tinha treze anos, até os meus quarenta e quatro anos. Então, um dia, andando por Tavistock Square, tive a ideia, como às vezes acontece com a concepção de meus livros, de Ao farol, num grande e aparentemente involuntário jato. […] Escrevi o livro muito rapidamente; e, quando terminei, deixei de ficar obcecada com minha mãe. Não ouço mais sua voz; não a vejo. Suponho que fiz por mim mesma o que os psicanalistas fazem por seus pacientes. Expressei uma emoção que sentia por muito tempo e muito profundamente. E, ao expressá-la, expliquei-a e então deixei que descansasse”. (trecho de A sketch of the past retirado do posfácio de Ao farol, ed. Autêntica, 2013)
* Sai este ano uma edição de A sketch of the past, sob o título Um esboço do passado, pela Editora Nós, com tradução de Ana Carolina Mesquita.
Mayara Freitas é editora, tradutora e mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo.
Imagem: Julia Stephens e Virginia Woolf, fotografadas por Henry H. H. Cameron.
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