Foi na primavera de 2009, dentro da piscina aquecida de uma casa de campo no pitoresco vilarejo de La Roque Gageac. À minha volta, uma linda casa de pedra, os campos do vale do Dordogne, uma mesa no jardim enfeitada por pão e dois copos de vinho. Isso era o que eu via à volta. Mas na minha frente eu olhei e disse alto: “olá, que alegria ter você. Seja bem vida, desculpa a minha demora”. O sorriso banguela da minha menina de cinco meses se juntava a gritinhos de alegria enquanto eu a levantava para cima e para baixo na piscina quentinha. Ela achou graça da minha voz, do meu sorriso. Talvez tenha achado divertido ver as lágrimas que saíam de mim misturadas à água daquele azul.
Na mesma época em que minha filha nasceu, eu perdi minha mãe. A perda da minha mãe transformou-se num fantasma que agora mora comigo. Às vezes, ele me assombra, mas já não é tão grave. O impacto da morte de uma mãe é duríssimo em qualquer época que seja. Perder a mãe e ganhar a filha não era o que eu planejava. Eu, que sempre gostei tanto de ser filha, o centro das atenções dela, precisava agora ser exclusivamente mãe e isso eu não queria. Num estado de constante tormento, terapia, ameaças minhas para mim mesma, autopiedade, revolta, falta de clareza e luto, passei cinco meses sozinha enquanto meu marido e minha filha me faziam companhia.
E como se num estalo, ao olhar aquelas gengivas banguelas, os olhos nos meus, a fé que parecia ter em mim, eu encontrei não só minha filha, mas ali, naquela piscina no interior da França, eu virei mãe. Com cinco meses de atraso.
Sou absolutamente fascinada pelos filmes de Ingmar Bergman. Sonata de outono é sem dúvida dos meus filmes preferidos, mas como dói. Com diálogos feitos de arames farpados, o confronto entre mãe e filha é das cenas mais comoventes e cortantes do cinema europeu. A maternidade ou a sua inexistência é o tema central. Ingrid Bergman e Liv Ullmann brilham em suas interpretações de mãe e filha num relacionamento feito de distanciamento, estranhamento, memória, negações de papel, opressão e expectativa culturais.
Como nós conseguimos nos sabotar tanto? No filme, uma mulher (veja que não uso a palavra mãe) é uma pianista de sucesso. Por causa da carreira brilhante, ela viajou o mundo, e para viajar o mundo era preciso sair de casa deixando suas filhas com o marido. A avalanche de cobranças é um fantasma constante nas vidas das mulheres do filme. A filha se sente sacrificada pela ausência da mãe e carrega a aflição bem disfarçada em polidez como consequência da privação de afeto e convivência. Ingrid Bergman, a ambiciosa e boêmia Charlotte, a pianista, é eventualmente questionada pela filha sobre o seu papel de mãe, inexistente. Mas o mais surpreendente é a não redenção dos papéis. É o suspense e desconforto do diálogo tenso e elaborado contornado por uma sofisticação literária com evidente profundidade psicológica. O conflito entre as duas não se resolve e isso é inquietante e obscuro. Como se víssemos aberta uma ferida, mas ao invés de cuidar de secá-la, a faca cortasse cada vez mais fundo e quando chegasse ao profundo, deixasse aberta a carne para colher insetos. Uma forma de tortura a cena. Talvez o embate seja resolvido no final, não é possível uma certeza.
Sugiro agora, um exercício de troca de ponto de vista: vamos imaginar que os personagens principais fossem um pai e um filho. Um homem que é ambicioso e boêmio — para usar os mesmos adjetivos destinados à mulher — que fosse um profissional de muito sucesso e para que esse êxito acontecesse tivesse que se ausentar de casa deixando os filhos com a mulher. Raramente vai ser possível encontrar qualquer material que investigue a culpa paterna. Ela existe? É uma pergunta sincera.
Culturalmente, estamos habituados a ver homens que se distanciam dos filhos, da mulher e da casa justificando o trilhar autônomo como busca de êxito financeiro, independência, realização e exercício de um talento. Porém, se viramos isso de ponta cabeça e explorarmos o cerne da relação mãe e filha, não é possível darmos trégua a uma mulher que quer ser uma profissional brilhante e ao mesmo tempo, mãe. Assim, o que acontece é o desperdício de um relacionamento e de um talento e o ressentimento mútuo entre as mulheres do filme, pois não é possível estar em dois lugares ao mesmo tempo. De fato, Charlotte é uma mulher que traz experiências de difícil compreensão, mesmo que esteja claro que ela mesma arrasta a corrente pesada herdada da mesma ausência de afeto da própria mãe. O desdém pelas filhas, uma delas presa a uma cama, debilitada e dependente dos cuidados da irmã que é profundamente marcada e ressentida, é angustiante. Uma mãe que tem a coragem de dizer à filha que quis amá-la, mas isso não aconteceu abala todo o nosso aprendizado e obediência culturais. Uma mãe que não é santificada; ela é um demônio. Mas será que é? Será que Charlotte não representaria o nosso fracasso em compreender ou talvez apenas aceitar que mães são mulheres e mulheres são pessoas cujos talentos e tendências não estão atrelados ao enlace maternal? Talvez o senso maternal seja mais uma questão de temperamento, personalidade e disponibilidade do que gênero. Talvez a arte de Charlotte fosse o maior amor possível que ela encontrou. Mas por conta do seu papel obrigatório de mãe e sua inabilidade para cumpri-lo, ela se transforma numa vilã que abandona as filhas, é egoísta e vaidosa e trai o marido. Mas que sorte de mãe é essa? Uma mulher que, belissimamente representada na obra de arte que é Sonata de outono, foi violentada pela sociedade que sempre planeja meninas como mães. O que sair da normalidade é inaceitável e será punido com o maior e mais corrosivo sentimento de culpa.
Eu acredito ter tido uma espécie de sopro de boa sorte quando encontrei minha filha. De fato, me tornei mãe. Mas, se aquele momento naquela paisagem idílica nunca tivesse chegado, teria sido bastante provável que eu tivesse punido a minha incapacidade de seguir o curso natural e esperado, e vivido carregando em mim a culpa de ter que ser uma impossibilidade íntima.
Nara Vidal é autora de livros infantis e adultos. Seu romance de estreia, ‘Sorte’ (Editora Moinhos, 2019) foi um dos vencedores do Prêmio Oceanos. Coordena a Capitolina Books, a Capitolina Revista e o Brazilian Translation Club, na Inglaterra.
Imagem: cena do filme ‘Sonata de outono’, de Ingmar Bergman.
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