Pequena entrevista com Katrina Dodson
Katrina Dodson tinha uma tarefa simples: apenas traduzir para o inglês todos os contos daquela que é um dos maiores pilares da literatura modernista brasileira, Clarice Lispector. Não seria a primeira vez que um tradutor americano se encarregaria de transportar a prosa sutilmente estranha e recheada de armadilhas deliciosas de Clarice até terras ianques (Clarice vem sido timidamente traduzida para o inglês desde o começo da década de 70), mas pela primeira vez em mais de quatro décadas, a memória da escritora seria celebrada nos Estados Unidos, Reino Unido e outros países de língua inglesa com um pouco do fervor com que é celebrada no Brasil: publicada em 2015 pela New Directions, a coletânea The Complete Stories levou Clarice à capa da seção de resenha de livros do New York Times, em 2015 (feito inédito para um autor brasileiro); no Reino Unido, a tradução de Katrina Dodson inaugurou também a participação brasileira na série vintage da editora Penguin; The Complete Stories ganhou diversos prêmios de tradução, dentre eles o prêmio PEN 2016; a coletânea foi considerada um dos melhores livros do ano de acordo com veículos como o New York Times, BBC, The Independent, Vogue, San Francisco Chronicle, Boston Globe, Literary Hub, dentre outros.
O que faz com que uma tradução seja bem sucedida é assunto para uma conversa mais extensa. O que se pode sem dúvida afirmar é que nenhuma tradução é inocente; acima de tudo, traduzir é fazer escolhas: ao “ouvir a voz” de uma escritora, o tradutor decide que palavras, tom e cadência ela terá no idioma de destino. E cedo ou tarde, essas escolhas poderão ser questionadas. Com relação às traduções mais antigas dos contos de Clarice, uma de minhas principais críticas tem a ver com a linguagem da autora, que por vezes parece ter sido deliberadamente achatada para agradar a um público de paladar menos habituado a sabores sutis. A tentação de editar a pontuação de Clarice Lispector é grande, para citar um exemplo, mas onde os tradutores que vieram antes não resistiram, Katrina foi firme; um dos principais méritos de sua tradução é a maneira como a linguagem incomum de Clarice é mantida no inglês, desde as frases iniciadas com letra minúscula até as vírgulas nos lugares mais inusitados. Se os dilemas das personagens de Clarice são na maioria das vezes internos, se ao invés de se jogar de um prédio ou fugir de casa, uma protagonista tem uma epifania ao ver da janela de um bonde um cego mascando chicletes, é na linguagem, então, que o leitor vivencia esse drama. Esse é um dos méritos da tradução de Katrina Dodson: o compromisso com a estranheza da linguagem de Clarice.
Doutora em literatura comparada pela Universidade de Berkeley e pesquisadora dos anos de Elizabeth Bishop no Brasil, Katrina Dodson vinha lendo Clarice Lispector desde 2003, mas não tinha, até então, traduzido um manuscrito inteiro. The Complete Stories é sua primeira obra dessa magnitude (nada mal para um primeiro trabalho de tradução), e vem aí um projeto ainda mais ambicioso: a tradução, em andamento, de Macunaíma, de Mário de Andrade. Por e-mail, Katrina Dodson conversou comigo, em português, sobre a experiência de traduzir Clarice e Mário de Andrade.
Flávia Stefani Resende — Você traduziu todos os contos de Clarice para o inglês, o que significa que passou bastante tempo com ela, que de certa forma se tornou íntima—tão íntima quanto uma leitora bastante atenta pode se tornar. Por conta dessa proximidade, me atrevo a perguntar: se estivesse viva hoje, que livros e autores você acha que Clarice estaria lendo?
Katrina Dodson — Foi um processo íntimo, com certeza. Mas mesmo assim, há coisas de Clarice que continuam sendo mistérios. Lembro-me daquela última entrevista que ela deu para a televisão com Júlio Lerner, em 1977, na qual ele perguntou algo parecido. E a resposta dela foi uma não resposta de certa forma: “Eu prefiro não citar nomes porque eu vou esquecer alguns e vai ofender, vai ferir. Assim, eu não cito ninguém.” Assim, não posso falar no lugar dela. Dito isto, gostaria de pensar que ela teria lido Elena Ferrante, a escritora italiana que escreve sob um pseudônimo. Ambas escrevem sobre a vida de mulheres, sobre os desafios públicos e particulares que elas enfrentam, com uma mistura de ternura e urgência, até violência. Clarice começou a publicar nos anos 1940s, e as narrativas de Ferrante começam nos anos 1950. Eu li todos os livros de Ferrante enquanto estava traduzindo Todos os contos, então talvez haja traços de Ferrante traduzida por Ann Goldstein na minha versão de Clarice. Ferrante, no seu livro mais recente, uma coletânea de entrevistas chamada Frantumaglia, cita Clarice, especificamente A Paixão Segundo G.H. Fiquei feliz quando descobri isso. Acho que elas teriam se entendido.
Flávia Stefani Resende — Existe algo sobre a escrita de Clarice que você não sabia no início do projeto e que o texto dela te revelou? Não me refiro tanto a dados biográficos, mas mais à obsessões de estilo, temas, figuras de linguagem e padrões sintáticos que você percebeu que ela repetia e que você só notou após começar a traduzi-la?
Katrina Dodson — Quando comecei o projeto, já tinha lido Clarice há mais de uma década. Além disso, discutia e escrevia sobre a obra dela como doutoranda na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Então já conhecia o estilo e os temas dela muito bem, já sabia que era diferente, como dizem. No entanto, foi só depois de aprofundar-me na tradução que realmente percebi como a linguagem dela é estranha, às vezes de forma sutilíssima. Ora ela troca a preposição esperada para outra, ora inventa palavras que ainda assim fazem sentido. Isso é mais difícil para um estrangeiro perceber e vivia perguntando aos amigos brasileiros se tal coisa era estranha ou não (na maior parte das vezes era, sim). E fiquei com a impressão de que ela dominava a língua portuguesa fortemente em suas divagações, além das formas convencionais — esses toques de estilo não mostram uma falta de conhecimento gramatical ou um português imperfeito de filha de imigrantes e sim um entendimento sofisticado das regras e normas que podem ser dobradas e torcidas.
Outra coisa que foi marcante notar num nível mais técnico é a tendência dela de utilizar um léxico afetivo, sobretudo palavras que marcam estados emocionalmente intensos, de perturbação até crise e gozo. No início, mantinha um arquivo de Excel em que anotava certas palavras chaves e as minhas traduções, para manter um senso de continuidade ao longo da coletânea. Uma vez que desenvolvi e internalizei uma voz particular para ela em inglês, deixei de precisar daquela planilha. Mas quando olho o arquivo, é interessante notar certas palavras repetidas, como: abatido, afobação, aflição, ânsia, ansiedade, inquieto e inquietação, desassossego, desastrado, perturbar-se, atordoado, alvoroçado e alvoroço, irrequieto, penoso, desgraçado, encabulado, ardente, deslumbrado, radiante, fulgente. Três palavras chaves são: bondade, seco, e mal-estar. Alguém deveria fazer uma pesquisa estatística sobre as palavras mais usadas na obra de Clarice — tenho essas ideias intuitivas mas gostaria de ver alguma tabela e daí fazer mais interpretações. O pessoal da literatura tem horror e ao mesmo tempo um fetiche por esse tipo de análise com cheiro de ciência!
Flávia Stefani Resende — Em se tratando do contexto social e histórico das personagens dos contos de Clarice, você poderia citar algumas escolhas que ela fez (situações comuns para as personagens dela) que foram particularmente desafiadoras de traduzir para o inglês—especificamente, para o contexto do público norte-americano contemporâneo?
Katrina Dodson — Em geral, Clarice não é tão difícil de traduzir culturalmente porque na maior parte da sua obra, o âmago reside em questões filosóficas ou humanas, de plano psicológico. Nesse sentido, ela escreve uma literatura universal, digamos, que não pede do leitor o conhecimento de uma história ou de um contexto social muito particular. Mas acho que os contos são os mais brasileiros, até os mais cariocas da obra dela. Há muitas referências aos lugares e aos bairros que o leitor que não conhece o país e talvez a cidade do Rio de Janeiro não compreenderia. Até fiz uma lista de bairros no Rio que aparecem nos contos porque o editor, Benjamin Moser, queria encomendar um mapa do Rio clariciano para ser incluído no volume, que acabou não acontecendo.
A maior perda, em termos daquilo que não pôde ir junto na travessia à nova linguagem, foi no conto “Devaneio e embriaguez duma rapariga.” Muita da ironia dessa história vem do fato de que Clarice está escrevendo num sotaque português exagerado, de que está tomando o ponto de vista de uma “rapariga” portuguesa no Rio. O melhor que pude fazer foi aproximar de um sotaque britânico levemente exagerado—porque fiz a tradução num inglês norte-americano e o contraste iria ser notável. Então, para “casa de banho” fiz “lavatory,” mas decidi que “the wee ones” para “os miúdos” seria exagerado demais, e até mais escocês do que britânico geral, então fiquei com “the little ones,” algo mais neutro. Foi impossível reproduzir as sutilezas do contexto do relacionamento histórico entre os brasileiros e os portugueses, especificamente na antiga capital. E como queríamos minimizar as notas de rodapé, não tinha como explicar que até o título, com a palavra “rapariga,” que traduzi como “young lady” (moça), no Brasil tem o significado mais comum de prostituta, o que é muito relevante para o conto, no qual observamos o comportamento contraditório da mulher do título.
Outro momento em que o humor foi completamente perdido para quem já não sabe está em “A procura de uma dignidade,” conto em que uma viúva velha fantasia sobre Roberto Carlos. Não podia trocar Roberto Carlos para Rod Stewart, ou alguém assim, então tive que deixar como “inside joke” (piada particular?) para quem já conhece o Rei da MPB.
Flávia Stefani Resende — No tocante à literatura brasileira, o seu projeto mais recente é a tradução de Macunaíma, romance modernista de Mário de Andrade. Além da forma (coletânea de contos versus romance), de que maneiras traduzir Clarice Lispector e Mário de Andrade tem sido diferente, e de que maneiras tem sido semelhante? Você está enfrentando desafios parecidos na tradução da obra de Mário, ou são problemas completamente novos?
Katrina Dodson —“Ai! que preguiça!” Esse é meu monólogo interior cada vez que penso no que estou tentando fazer com Macunaíma. Em termos de ser um desafio enorme, de estar sob muita pressão para acertar e respeitar uma obra de gênio na trasladação para o inglês, é muito parecido com o projeto de traduzir Clarice. Na verdade, foi a ousadia e a dedicação ao trabalho que precisei ativar para traduzir Clarice que me deram a coragem e a confiança de tentar levar uma nova versão do clássico modernista para o inglês.
As duas diferenças maiores ao traduzir o romance de Mário de Andrade são a pesquisa e o tamanho da invenção. Quando traduzi Clarice, fiquei na minha escrivaninha e traduzia. Não precisava fazer qualquer pesquisa além do que se busca nos dicionários e na Internet, como todo tradutor tem que fazer. Eu já tinha vivido no Rio um tempo e já conhecia muito bem a obra dela, então entrei no mundo de Clarice com familiaridade.
Quanto a Macunaíma, é uma obra que sintetiza a grande erudição do seu autor. Segundo o mito da criação, ele compôs o que chamava de rapsódia em seis dias, numa rede na chácara do Tio Pio em Araraquara, mas mesmo assim surgiu de uma mistura de mitos indígenas, da pesquisa do antropólogo alemão Koch-Grünberg, de falas e rituais regionais, inclusive nordestinos e afro-brasileiros. Há muito Tupi e até palavras de outras línguas indígenas misturadas com o português padrão, então tenho que pesquisar até vinte palavras numa só página. Estou usando vários dicionários e recursos, como o Roteiro de Macunaíma de Cavalcanti Proença. Já fui até a Amazônia para ver a flora e fauna do livro no ambiente cotidiano para melhor descrevê-los em inglês. E fui para o acervo de Mário de Andrade na Universidade de São Paulo para olhar documentos como as revisões do manuscrito e o livro de Koch-Grünberg em que Mário começava a esboçar a ideia do romance. Como estou escrevendo a apresentação e fazendo um glossário de termos em Tupi e outras línguas, meu plano é voltar para o Brasil para pesquisar mais depois de terminar o primeiro passo da tradução. É muito trabalho!
Tive que ser bastante criativa ao traduzir Todos os Contos, mas era uma espécie de invenção estreita. Como Clarice não faz coisas doidas em toda frase, tive que controlar meus impulsos e manter uma certa sutileza de estilo. Quanto a Macunaíma, é um livro doido pra caramba. Claro que tem uma lógica interna, mas Mário joga a fala brasileira de várias regiões num caldeirão junto com palavras em outras línguas e palavras que ele próprio inventa. Então fica mais impossível traduzir Macunaíma do que os contos de Clarice, mas é exatamente por isso que tenho mais liberdade para inventar e brincar. Por exemplo, não há como reproduzir a mistura de estranhamento e familiaridade gerada pela integração das palavras tupi com o português, porque já há uma porção de palavras indígenas que fazem parte do português cotidiano. Mas Macunaíma exagera isso, então estou experimentando deixar traços de tupi, de palavras em outras línguas indígenas, e palavras de origem bantu junto com o inglês, sobretudo com as enumerações, como, por exemplo, doze tipos de palmeira ou dez variedades de macaco (“the inajá palm, the javari palm…”). Queria manter o impacto desses sistemas de classificação indígenas da natureza em oposição a um sistema que vem da Europa. Traduzindo tudo para uma língua europeia negaria o espírito antropofágico do romance, de devorar e misturar todas as influências que compõem a “entidade brasileira,” como Mário a chamava. Sinto pavor e preguiça ao traduzir esse romance, mas também muito prazer e muito humor.
Flávia Stefani vive em São Francisco, nos Estados Unidos, e estuda Criação Literária.
Ilustração de Carolina Nazatto.
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