Nos últimos dias da exposição de Christian Boltanski no Centro Georges Pompidou em Paris, uma senhora elegante e perfumada torceu o nariz fino à vista de uma obra. Impaciente, havia solevado bruscamente o véu preto que encobria uma das várias fotografias granuladas em preto e branco. Ela não leu a descrição da obra no exemplar distribuído na entrada: em Concessions, os visitantes deveriam apenas entrever as fotografias de cadáveres extraídas da revista El caso por detrás do tecido levemente revolvido pelo ar dos ventiladores.
Além de ter feito cara feia para o defunto desfigurado da foto, a senhora aplica todos os dias sobre a pele um creme para atenuar os pequenos sulcos do tempo. Ela não devia estar pensando na morte; nem na vida.
Isso uma semana antes das medidas de Macron contra a epidemia neste mês de março, antes do confinamento. Àquela altura, a Itália, o primeiro país europeu afetado pelo vírus, ainda era um estranho no ninho continental; ainda não tínhamos visto as imagens impressionantes das longas fileiras de caminhões militares transportando os féretros das vítimas para fora de Bergamo, nem as dez páginas com obituários, com as pequenas fotografias que o artista plástico francês costuma recortar para suas obras.
Ninguém quer se lembrar da morte, ela é feia e dá ânsias. Não só a própria mortalidade — que a pandemia atual não deixa escapar do pensamento — como toda e qualquer ideia de morte. Uma crônica contemporânea ilustra de maneira grotesca o que digo: um jovem consumidor de fast food se indignou e perdeu o apetite após descobrir uma cabeça de frango frita em seu chicken wings. Aquela visão se perpetuará em sua memória assim como, por alguns segundos, o rosto anônimo do defunto na careta da madame, que queria dizer: esse “artista” é um estraga-prazer.
Será esse, então, o papel daqueles que, pela criação estética ou por qualquer outro meio (patógeno?), buscam dar a ver uma imagem mais humana e menos adulterina da vida?
Esta é a alcunha que o narrador do premiado romance de Tiago Ferro, O pai da menina morta (Todavia, 2018) imagina receber quando a narrativa sobre o luto de sua filha será publicada: “o estraga-prazer”. Para evitar o desafeto seria necessário, portanto, escapar da inevitabilidade do fim de nossas existências, se perder na rotina, torná-la de alguma maneira sacra, uma vez que abandonamos qualquer esperança na salvação ultraterrena. Walter Benjamin já dizia que o capitalismo é a nova “religião da modernidade”, um “fenômeno religioso que se desenvolve de modo parasitário a partir do cristianismo”. Mas, enquanto a fé cristã pensa “cada instante” em relação direita com o fim, o nosso tempo, ao contrário, se quer infinito e cada nova crise do sistema apresenta-se como um infernal reinício. E é assim que, desde 1971, quando o governo Nixon declarou suspensa a convertibilidade do dólar em ouro, temos vivido mais do que nunca de um culto autorreferencial.
Porém, não só de abstração vive o homem, porque de repente uma história desaparece para sempre e então somos obrigados a aceitar a nossa condição humana, a considerar e falar de nossos mortos. Penso, por isso, que O pai da menina morta é menos um romance sobre o luto na primeira acepção do termo — isto é, um “sentimento de pesar ou tristeza pela morte de alguém” — do que uma narrativa sobre os aspectos tristonhos da vida falsificada. O luto é a lente através da qual o narrador enxerga com estranhamento o teatrinho cotidiano — como no voo de Yuri Gagarin evocado no livro —, a artificialidade dos papéis e convenções sociais que parece se contrapor a uma certa ideia de vida autêntica, embora esta não seja sugerida diretamente, senão pela própria narrativa fragmentária.
Por isso, os personagens do romance, com exceção de Lina, a ex-mulher do pai da menina morta, são denominados por seus papéis sociais, ou por iniciais que reforçam o anonimato. Sob os olhos do protagonista, o mundo figura-se como um jogo cênico em que todos os atores parecem esquecer que estão representando.
A religião moderna tem dessas coisas: fazer com que nos identifiquemos com a peça do quebra-cabeças que nos cabe (pai, marido, membro da classe média etc.), a pecinha indispensável ao funcionamento do jogo. Assim, um dos pontos altos do livro ocorre quando o alheamento do narrador — um paulistano da classe média — em relação à vida, passa a ser compartilhado em alguma medida por figurantes de classes sociais mais baixas.
Penso no motorista do apresentador do telejornal que noticia a morte da menina de oito anos: “vítima de gripe”. O motorista reconhece parte do embuste — ele não tem um casarão no Morumbi e, quando o seu filho morre, o mesmo apresentador alega uma razão que, pelo tom, deveríamos considerar menos trágica, “um acerto de contas entre traficantes”. Ou, então, na cena hamletiana dos coveiros em que um deles, apesar de habituado aos ossos do ofício, sente o peso dos enterros do dia e acaba dormindo no chão do banheiro.
Esses momentos valiosos permitem ao leitor entrever, pelas frestas de uma vida adormecida, alguns fiapos de humanidade. Daí os inventários (os fios de cabelo, o hálito da manhã, os últimos dentes de leite) e listas — “de medos bobos”, “de remédios sem prescrição médica”, “de brincadeiras no playground” — a que recorre o narrador. As abundantes enumerações através das quais a vida inteira de um homem é perscrutada em cada ângulo procuram dar um novo sentido à experiência do protagonista, e também à nossa, pois a minúcia pode abrigar em si algo que antes lhe escapara, adquirindo uma poeticidade a um só tempo incisiva e delicada.
Isso, e também o inconformismo vanguardista que desponta de quando em quando no relato e que, em função da perspectiva dilacerante da ausência, não tem ares de afetação. O mundo paródico de Bataille, a afronta à norma burguesa de Artaud, as touradas de Leiris — o entrelaçamento “duvidoso” entre erotismo e luto de inspiração tauromáquica — tudo vai convergindo para um desnudamento dos “bastidores da vida” até chegar na assimilação vertiginosa de um de nossos males mais inelutáveis.
O final do romance é lindo, e parece se aproximar do propósito dos “construtores de espelho” de Michel Leiris em Espelho da tauromaquia, isto é, aquele “de agenciar um desses fatos que podemos tomar por lugares onde o homem tangencia o mundo e a si mesmo”. Acredito que essa seja uma das ambições secretas do romance.
Por que, então, não se entregar ao mundo revelado pelos “estraga-prazeres”?
Natasha Belfort Palmeira é tradutora e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo e na Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3.
Imagem: fotografia de Tiago Ferro, por Mira Cervino.
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