Com a escalada do vírus que não podemos ver e da ignorância humana que se quer explícita, dias apavorantes emergem globalmente, sob assimilações e idiomas distintos. É provável que o vocábulo “difícil” esteja sendo evocado em múltiplas línguas enquanto se lê este texto. Há algo no recolhimento coletivo em cada casa, ou seja, na contingência da vida, que dialoga com nossos desesperos mais íntimos e atemporais. Talvez o fato de que não mais seja possível deixar de escutar nossos medos e dúvidas.
No caos interno que habita cada um e estabelece condomínio com aqueles que estão à volta, a arte dá um jeito de fazer fresta. Buraco. Saída. Esta bem-vinda fissura no caos veio recentemente com um filme e um livro: Querido Menino (Beautiful Boy, 2018) e Caro Dr. Freud: Respostas do século XXI a uma carta sobre homossexualidade (Editora Autêntica, 2019), respectivamente.
Além do fato de ambas as obras reportarem suas origens à literatura — o filme é baseado em livro homônimo de David Sheff publicado pela Globo Livros — , elas colocam no centro de suas narrativas aqueles que frequentemente são postos à margem.
Começo pelo filme. Na adaptação dirigida pelo belga Felix van Groeningen, o ator Steve Carell empresta corpo, resiliência e lágrimas ao escritor norte-americano David Sheff, autor de páginas no New York Times, Wired, Rolling Stone, entre outros veículos. A construção do personagem, assinalada pelos diálogos e, especialmente, pelas trocas de olhares, denota equilíbrio entre a dedicação profissional e os cuidados com a família. A balança, porém, pende significativamente para estes últimos quando David descobre que o filho Nic (interpretado por Timothée Chalamet) abusa de drogas. O uso transformado em vício impõe uma nova dinâmica a pai, mãe, madrasta e irmãos; uma que tenta esconder as angústias parceladas em drogas e experiências de risco ao mesmo tempo em que revela vazios resistentes a qualquer preenchimento.
A dor e a impotência são corrente de transmissão: percorrem as conversas, decisões, arrependimentos e gestos; não são submetidas à espetacularização. Sua maior intensidade, em um dado momento do filme, é justificada. Não há palavras para contornar esses sentimentos, mas apenas o triste lamento da música “Symphony N. 3”, de Henryk Górecki. A escolha das músicas para a trilha, aliás, não é fortuita. Felix van Groeningen já havia mostrado em Alabama Monroe (2014), que algumas canções podiam marcar a ausência do que escapava à verbalização.
Carell e Chalamet inscrevem em seus personagens a sensibilidade apagada em tantos retratos sobre o abuso de drogas — especialmente na aridez das políticas públicas. Há, de fato, o desconforto, a ingratidão, a incompreensão e a degradação que caracterizam os efeitos do vício nos usuários e pessoas próximas. Mas o filme faz a respeitosa escolha por colocar uma lupa no vínculo familiar, não na drogadição. A relação entre pai e filho é descrita com tempo e delicadeza. “Tudo” é o significante eleito para o amor entre ambos. Cenas comoventes nos ensinam que esta amarração de afetos no núcleo masculino deve sua estabilidade às figuras femininas da família, interpretadas por Maura Tierney e Amy Ryan.
Da marginalização do vício à marginalização da homossexualidade; chegamos ao livro Caro Dr. Freud. Trata-se de um exercício hipotético, mas perfeitamente calcado na realidade: e se os autores presentes no livro tivessem recebido de Freud a célebre carta em que ele conforta uma mãe sobre a homossexualidade do filho dela? Como — e de onde — responderiam?
As vozes ali são plurais, organizadas pelo psicanalista Gilson Iannini, e acabam conectando os questionamentos daquela mãe em 1935 à nossa retrógrada modernidade. Pois quem diria que, em nossos dias, fôssemos presenciar grupos pedindo à Justiça a liberação para a oferta da “cura gay”?
A resposta freudiana, então para uma destinatária particular, hoje serve à universal demanda por respeito: “a homossexualidade certamente não é uma vantagem, tampouco é algo de que se envergonhar, não é nenhum vício, nenhuma degradação, não pode ser classificada como doença”. Mesmo que a homossexualidade tenha sido retirada da designação de doença ou transtorno nas regulamentações mundiais verificadas para se atestar sobre “normalidade”, não faltam estratégias individuais e coletivas que visam à manutenção da discriminação, à naturalização dos insultos e, pior ainda, à incitação aos crimes de ódio.
Antonio Quinet, Christian Dunker, Guacira Lopes Louro, Letícia Lanz, Marcelo Veras, Marcia Tiburi e Marco Antonio Coutinho Jorge são alguns dos nomes que responderam ao chamado e a ele deram multidisciplinaridade. Por todo o livro, encontramos reflexões que imprimem tato e gentileza à leitura, mesmo que a resposta ressalte a aspereza de certas realidades.
Livro e filme, em diferentes espectros do sofrimento, trazem aquela reconfortante sensação de que é possível se construir algo a partir da compartilhada travessia pelos dissabores da vida. Partem de padecimentos específicos, porém em direção ao sublime de cenas e palavras, em um movimento corajoso que termina por contaminar diferentes graus de envolvimento. A arte tem disso, de fazer surgir costuras improváveis, com fios que sequer eram acessíveis.
Com estas duas obras, posso dizer que encontrei o outro, que generosamente só poderia me oferecer a sua diferença.
Amanda Mont’Alvão Veloso é psicanalista, jornalista e mestranda em Linguística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Imagem: Steve Carell e Timothée Chalamet no filme ‘Querido menino‘ (2018).
0 Comments