não haverá passeio
hoje não me convidaram para nenhum passeio
nem amanhã
nem amanhã
só assim tenho certeza
de que não haverá passeio decadente
e também não haverá passeio bom
não terei milho no lugar dos dentes
você não terá sangue subindo pela face
nenhum de nós cairá na tábua apodrecida do trapiche
ficando com uma perna presa
e a outra esmagada
prometo que não haverá passeio
só assim tenho certeza
sustos & sustos
de pelo menos um susto
todos nos recuperamos
o que muda é o conteúdo
que fica sobrando no chão
quando espremido o susto de um
esguicha repelente e algodão
o de outro deixa um rastro de fruta
pequeno cachorro sacrificado
agora olha aquele que engraçado
explodiu orfanato e caco de vidro
beijinho torto
o plural muito correto do idoso
a imagem de santo encontrada no bolso do morto
nossa autoafirmação ingênua no flerte
alguém que aguarda a visita abrindo
um pacote de bolacha wafer
qualquer espera
já que toda espera é sonho é
vontade
a dor dos outros
o incêndio dá um quadro curioso
a perda compõe um texto que pesa
o amor destruído é uma peça sobre a mesa
a dor dos outros
vemos na tela
tocamos de luvas
não alcanço o que me conta
se alguém morreu
minhas condolências
minha dor eu preciso
apresentar ao público
antes que desapareça
sua dor
por favor
cubra com papel celofane
a eventual visita da poesia
recebi a visita da poesia
ou tanto quis tanto fiz
que imitei o que o poeta
experimenta durante a visita
confeccionei os gracejos
menti que tinham brotado
espalhei as canetas pela mesa
dizendo que foi tudo obra da poesia
com o símile guardado no bolso
teria abordado de forma agressiva
os doces prospectos do afeto
e as negociações que ainda fazia?
por quanto tempo
terei dinheiro para viver nesta cidade
antes que pese demais o medo
e o medo me roube a energia?
Ana Guadalupe é poeta e tradutora. Formada em Letras pela Universidade Estadual de Maringá, é autora de ‘Relógio de Pulso’ (7Letras, 2011), ‘Não conheço ninguém que não seja artista’ (Confeitaria, 2015, em coautoria com a fotógrafa Camila Svenson) e ‘Preocupações‘ (Edições Macondo, 2019), do qual os poemas acima fazem parte.
Imagem: pintura de Juliana Bernardino, que ilustra a capa de ‘Preocupações’.
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