Sonhar pra si a metáfora das plantas
Uma das últimas coisas que fiz antes de me mudar da capital pro interior foi consultar uma taróloga. As coisas estavam muito obscuras pra mim naquele momento porque apesar de desejar essa mudança, eu não tinha a mínima ideia do que estava indo fazer naquele lugar. Tinha feito essa escolha guiada por um senso vago de querer experimentar coisas diferentes, mas não sabia como agir, não tinha de fato nenhum plano concreto do que fazer ali.
A carta mais importante que ditou todo o tom da minha conversa naquela tarde com a taróloga foi a Sacerdotisa. A Sacerdotisa é a terceira carta da jornada arquetípica representada no Tarô, e costuma trazer o desenho de uma mulher pálida vestida com uma túnica enfeitada com cruzes, que está sentada num trono segurando um livro. Em algumas representações, como no Tarô clássico de Marselha, um ovo aparece ao fundo, à direita da mulher.
A Sacerdotisa evoca uma mulher encerrada em um templo ou clausura, que fez um pacto com esse mistério que alguns chamam de Deus. Ela encarna o arquétipo do inconsciente manifesto. Sentada, ela parece estar chocando esse ovo e também a si mesma. Ela representa uma gestação, mas não de carne que cresce no ventre e sim uma gestação espiritual, já que a sacerdotisa é uma mulher mística.
É uma carta que costuma ser mal recebida porque ela diz “não faça nada, não é hora de agir e sim de gestar”. Ninguém que procura o oráculo aflito pra saber como agir gosta de ouvir que não é pra fazer nada, apenas deixar as coisas fluírem, sem atuar diretamente sobre elas. Nós estamos muito acostumados a achar que a única forma de atuação é pela ação, nunca pela sutileza da espera, da observação demorada, da adaptabilidade lenta e interna que a carta da Sacerdotisa sugere. Frequentemente, a gente não sabe nem o que quer dizer isso.
Não é algo só nosso, do bicho gente, mas comum a todos os animais. É parte do nosso perfil de respostas instintivas lutar ou fugir, duas ações drásticas e frenéticas que fazem nosso corpo inteiro se agitar pra responder ao que nos acontece. Já esse tipo de resposta que exige espera, que capta e analisa mas não se mexe, nós frequentemente julgamos que é inferior, coisa de organismos indefesos que ficam — feito uma planta.
Fiquei pensando muito na nossa dificuldade em lidar com essa atuação diferente sugerida pela carta da Sacerdotisa enquanto lia A revolução das plantas, livro escrito pelo neurobiólogo e pesquisador Stefano Mancuso. Nesse livro, o autor constrói uma série de ensaios curiosos, tomando as habilidades das plantas como modelos inspiracionais pra gente lidar com os desafios contemporâneos — e isso passa por sustentabilidade, mas também arquitetura, engenharia espacial, sociabilidade e cooperação. Mancuso conta que em geral pensamos nas plantas como uma coisa meio inanimada mesmo estando vivas, ou apenas como uma paisagem de fundo no lugar de protagonistas. Às vezes, reduzimos elas a um objeto — e o capitalismo é muito bom em nos ajudar a construir esse tipo de relação com as coisas. Mas dificilmente a gente pensa em plantas como seres complexos, dotados de inteligência, capacidades e percepções muito finas.
Qualquer um que já trouxe uma planta adulta exuberante pra casa e observou essa planta morrer pode ter sentido a decepção consigo mesmo por não ter sido capaz de manter a planta viva. Dificilmente, no entanto, se deu conta de que a planta que chega ali tem uma história — ela viveu de determinada forma antes de chegar ali, recebeu luz e água e nutrientes de um certo jeito, e de repente se viu num lugar novo, diferente, que exigiu mais adaptações do que ela dava conta de fazer.
É difícil pra nós fazermos essa leitura até mesmo por questões biológicas, já que lidamos com o estresse de uma maneira muito distinta: diferentemente das plantas que ficam enraizadas onde estão, os animais lidam com as dificuldades que aparecem se movendo. Assim, se chega o inverno e o frio se torna penoso, a comida escassa e o ambiente hostil, a resposta é migrar pra uma região mais quente enquanto a estação não muda. Se o lugar não tem parceiros disponíveis pra reprodução, pensamos logo em ampliar os horizontes. Se acabou a comida, é melhor tentar procurar um lugar com mais fartura. Se no lugar que o animal vive elegem alguém inconcebível, ele pensa logo em se mudar pra outras bandas.
Embora todas essas respostas sejam soluções, não deixa de ser possível interpretar que também são fugas, tentativas de evitar um contexto desagradável procurando um mais favorável. Já a planta, que não pode se mover, tem que encontrar formas de se adaptar a todas essas coisas se quiser sobreviver. Pra isso, ela precisa ter uma percepção muito afinada do que está acontecendo pra ser capaz de se integrar. As plantas não fogem nem mudam o entorno delas, mas elas captam as coisas — e essa é a fortaleza delas.
Vegetais, então, precisam ter como perceber com precisão a quantidade de água disponível, além de ter uma prospecção sobre a umidade que está no ar. Precisam ser capazes de captar os minerais na terra, a temperatura, a luz e a composição dos gases atmosféricos. Também é bom que consigam distinguir estímulos mecânicos, a presença de predadores, de organismos simbiontes ou nocivos, bem como a proximidade ou o afastamento de outras plantas que podem competir por recursos ou serem úteis pro seu desenvolvimento. Em todas essas situações, as plantas precisam ser capazes de sentir a intensidade, a duração e a direção que caracterizam cada uma dessas complexas interações. “Essa é mais uma confirmação de que associar a ideia de vegetal à falta de sensibilidade é uma enorme estupidez”, conta Mancuso.
Não é sem porquê essa forma sensível das plantas de lidar com o estresse. Esse tipo de resposta só pode ser dada porque a planta tem uma estrutura descentralizada, que é muito diferente da nossa. Enquanto nós temos um sistema nervoso central, as plantas têm sistemas espalhados e intrincados: são as raízes, que entram na terra e se ramificam formando uma espécie de rede esparramada por uma superfície gigantesca; mas também as folhas, que funcionam como partes autônomas, como se a planta fosse não um único indivíduo mas uma colônia com vários módulos que se repetem. Tanto é que diferente de nós, que se tivermos um órgão atingido corremos o risco de morrer, se a planta tiver uma folha arrancada não só sobrevive como em muitos casos é capaz de gerar um outro ser. É um tipo de organização que não temos fisicamente em animais, mas que é bem parecido com o que a gente vê em conjuntos deles, como nos insetos sociais — como abelhas e formigas — ou em animais que vivem em bandos — como pássaros ou macacos. Ambos atuam usando as particularidades surgidas a partir das interações para responder aos problemas e há nisso uma forma de inteligência que é muito maior do que a simples soma de ação das partes.
Nem sempre, porém, nós reconhecemos esse tipo de dinâmica como inteligência. Embora a complexidade orquestrada do formigueiro seja bonita de se ver e de se imaginar, a formiga em si não é vista como uma coisa inteligente porque a ação parece ser só uma resposta dentro do conjunto. A gente tende a pensar que a formiga corta folhas apenas porque esse é o trabalho dela — ela foi biologicamente programada pra fazer isso, e esse trabalho nem é de fato algo que resulta em algo pra ela, mas sim pro formigueiro. No entanto, a percepção de que só existe inteligência na expressão da vontade individual, assim como a de que nas plantas só há passividade é fruto de nos tomarmos constantemente como modelos. Não é necessariamente real.
A Sacerdotisa continuou a aparecer pra mim com frequência nos anos seguintes à essa mudança, como quem me avisa de que essa questão é tão importante que preciso permanentemente fazer as pazes com esse tipo de ‘ação’. É uma lembrança arquetípica de que existem outras formas de inteligência e de se fazerem as coisas que não seja pela atuação volitiva — e não dá pra dizer que a Sacerdotisa é só instinto, afinal ela é uma figura que inspira um bocado de solenidade, ela tem um livro sagrado nas mãos.
É curioso nos lembrarmos nos momentos em que a gente sente que pode agir tão pouco de que existem outras forças. A gestação sagrada e a espera da Sacerdotisa é também a das plantas, que captam as coisas ao redor de uma maneira virtuosa. Nenhuma delas está de fato parada, apesar de nem sempre sermos capazes de ver. Conectar-se com o invisível é a potência da Sacerdotisa, que tem uma ligação profunda com o divino que habita em cada uma das coisas vivas.
A Sacerdotisa e as plantas dizem que não é necessário que se dê uma resposta tangível em alguns momentos. Que isso não significa se tornar paisagem, nem que nada está sendo feito. Não é uma atitude fácil de ser levada, tampouco é algo que facilmente pode ser reconhecido pelos outros como uma resposta inteligente. Todas as vezes que chamam alguém de planta é pra fazer virar bicho. Mas é uma falta de visão considerar que por estar parada a planta é menos potente. Quando o sistema nos obriga a agir permanentemente, um modelo que inclua outros tipos de saberes às vezes pode parecer que é não é possível, ou que é só uma fabulação. Mas nem sempre a gente precisa virar bicho. A gente também pode sonhar pra si a metáfora das plantas.
Carla Soares é mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais e autora do Outra Cozinha.
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