Para quem está acostumada a desejar a própria morte, o apocalipse é um alívio. Essa poderia ser a sinopse de Melancolia (2011), filme de Lars von Trier. Se mudarmos alguns detalhes, trocando a colisão de um planeta por uma doença infecciosa, poderíamos descrever a atual crise causada pelo coronavírus. Não Melancolia, e sim Pandemia — até a rima entre os nomes faz eco com alguns dos títulos da filmografia do diretor.
Lars von Trier trabalha com a desproporção de espaço e tempo para efeito sensorial. A primeira parte do filme se passa ao longo da festa de casamento de Justine (Kirsten Dunst). Sua irmã Claire (Charlotte Gainsbourg) e seu cunhado John (Kiefer Sutherland) oferecem sua suntuosa casa para ser o palco da festa, que inclui dança, duas refeições, uma no salão, outra no jardim, e uma espécie de ritual com balões no céu.
Logo no início, ficamos sabendo que os noivos chegam com duas horas atrasados. À parte de Claire, ninguém parece especialmente aborrecido com isso. No meio das festividades, Justine tira uma soneca, parece ficar horas imersa numa banheira, percorre longas distâncias no gramado no carrinho de golf, transa com um convidado no jardim. Não é um ato contínuo, Justine desaparece, volta para a festa, todos continuam no mesmo lugar, e então desaparece de novo. Só as pessoas mais próximas se dão conta do fato. O resto dos convidados parece nem perceber a ausência da noiva por longos períodos de tempo. É esquisito, nem uma rave duraria tanto tempo.
A primeira dança do casal é ao som de “La Bamba”. É uma cena que acentua a noção de desproporção de tempo: a princípio, achamos que é a música entre os dois noivos, mas a montagem muda de ângulo, e a cada momento diferente a noiva dança com uma pessoa — o noivo, o cunhado, o chefe, o pai. “La Bamba”, no entanto, continua tocando no mesmo ritmo cronológico normal. É como se coubessem duas horas em cinco minutos de canção. O tempo se estende e contrai numa sensação onírica angustiante — aqui, não há sonho, o casamento perfeito no cenário idílico, e sim o pesadelo da depressão. Claire diz a Justine que ela precisa estar feliz, afinal é seu casamento, a festa foi muito cara, essa é a expectativa: felicidade, alegria, realização. Justine é incapaz de dar resposta à altura.
A mesma lógica cinematográfica ocorre com o espaço físico. Na primeira cena, uma limusine gigantesca tenta atravessar uma estreita e sinuosa estrada de terra. É quase ridículo, cômico, sem sentido. Quem teve a ideia de contratar uma limusine tão longa para chegar em um local tão inacessível? Não seria mais prático alugar uma SUV? O gigantesco jardim é uma mistura de campo de golf com os jardins de Versailles — para ser mais específica, a referência exata é ao jardim de O Ano Passado em Marienbad, filme de Alain Resnais.
Por algum motivo, as personagens tentam adivinhar quantos feijões há no vaso que decora uma das salas. Os números são díspares, alguém diz dois milhões, outro diz seiscentos. Enfim, descobrimos que quem acertou o número foi a própria Justine. Ela sabe de coisas que aqueles à sua volta não sabem. Ela sabe que o mundo é mau, que o luto não é necessário, tanto faz o apocalipse, não estamos perdendo grande coisa.
Caso filmasse Pandemia, Lars von Trier poderia tomar exatamente as mesmas escolhas formais para transmitir a sensação de viver semanas trancado em casa. Em vez dos enormes jardins vazios da mansão, a Praça de São Pedro despovoada, o Papa Francisco sozinho, o nada no entorno. As ruas vazias de Nova York, Milão, Madri, Berlim, Londres, Seul, Pequim, Teerã. O tempo passa tão devagar durante a quarentena quanto numa festa de casamento indesejada.
Lars von Trier gosta de personagens femininas sofredoras. No entanto, nenhuma outra teve tanto apoio de entes queridos como Justine. Em Pandemia, a protagonista que não sabe quando é domingo ou terça-feira poderia ter o privilégio de estar presa numa casa de campo (faria yoga, receitas mil, assistiria a filmes?). Ou poderia morar no mesmo barraco que Selma, de Dançando no Escuro (2000) — a bolsa ou a vida, pergunta o Ministro da Economia. Mas esse é outro filme.
É só uma gripe, diz o presidente, ignorando os caminhões de mortos porvir. John vai à cidade, volta com o carro cheio de provisões, um estoque de vinhos, comidas deliciosas. Melancolia não vai colidir com a Terra, mas pode chegar perto, para isso é preciso estar preparado, não sabemos quanto tempo vamos ficar presos na casa, mas, por favor, não mencione nada para Claire. Ela é paranóica, fica nervosa à toa. Não há possibilidade de uma colisão do planeta com a Terra, garante John. O empregado que toma conta da propriedade deixa de trabalhar. Claire não gosta disso, quer o empregado por perto, para ajudar a cuidar das coisas. Talvez ele queira ficar com a família dele, sugere Justine. Claire não sabe se o empregado tem ou não tem família, é só um empregado, é pago para servi-la, não pode simplesmente não ir ao trabalho, só porque é o fim do mundo. John tranquiliza Claire mais uma vez: será só um momento bonito em família, estamos nessa linda propriedade, há vinho e bons queijos. É só uma gripe, a mortalidade é baixa, afeta idosos, nem isso, idosos diabéticos, com problemas cardíacos, pulmonares, ninguém morre de coronavírus. Mas, assim que percebe a gravidade da situação, John surta. Em silêncio, sem fazer alarde, sai da casa, junta-se aos cavalos no estábulo, e ali comete suicídio.
John não teve a estrutura emocional para lidar com um evento de dimensão tão grande. De novo, errou a proporção. Antes, havia organizado uma festa de casamento longa demais, situada em jardins imensos, as cadeiras brancas como pontinhos na imensidão verde, aquele patético food truck que se pretendia chique, meio perdido, descontextualizado. Agora, confundiu o fim do mundo com férias, com uma oportunidade de aproximar do sublime, da natureza, do céu.
Da mesma forma, Claire se esforça para manter a normalidade diante do apocalipse, que tal uma taça de vinho branco no terraço, uma música, a nona sinfonia de Bethoveen? Pode ser agradável, diz. O despreparo do casal para as adversidades soa tão ridículo quanto a elite viajando para suas casas de fim-de-semana, contaminando os vilarejos locais. E vão a festas, noivados, casamentos, porque não é possível, não é tão transmissível assim, só uma porcentagem pequena morre, não vamos parar nossa vida. O Brasil não pode parar.
Melancolia é dividido em duas parte: a primeira é o casamento, a segunda se passa alguns meses depois. Justine piorou da depressão, se separou do marido, veio para a casa da irmã, que cuida dela como se fosse um bebê, faz companhia, prepara seu prato favorito, lava seu corpo. Quando Melancolia, o planeta, começa a dar sinais de proximidade, Justine banha-se nua diante de sua luz. Finalmente está em paz. No dia seguinte, Claire se surpreende porque não é mais necessário dar banho na irmã. Ela parece subitamente bem, calma. Agora, é Justine quem conforta Claire, desesperada com a possibilidade da morte.
Eu sou Justine. Para mim, é libertador a completa ausência de controle, a súbita impossibilidade de fazer planos e que a futilidade de viver para aprovação alheia seja, de repente, desnudada. Eu nunca tive medo da morte. Ao contrário, esse pensamento sempre me acompanhou. Não é tabu, e sim familiar. Agora, sozinha, nunca me senti tão viva. Pode não ser o apocalipse, ao menos não de maneira literal, provavelmente não será. “But it’s the end of the world as we know it (and I feel fine)“.
Maria Clara Drummond é jornalista e escritora. Publicou ‘A festa é minha e eu choro se eu quiser’ (Guarda-Chuva, 2013) e ‘A realidade devia ser proibida’ (Companhia das Letras, 2015).
Imagem: cena do filme ‘Melancolia’ (2011), de Lars von Trier.
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