Talvez alguns leitores já conheçam a minha relação com Natalia Timerman. Na última entrevista publicada nesta revista, ela relatou como nos tornamos amigas e parceiras na literatura. Sendo canhota, eu diria que ela é a minha mão direita. Natalia lê meus manuscritos, faz sugestões, acode minhas crises literárias e extra-literárias. Faço o mesmo por ela. Por isso tive a honra de ver nascer e acompanhar todo o processo de produção do seu primeiro romance, Copo vazio, lançado em fevereiro pela Todavia.
Belo e intenso, como tudo o que Natalia escreve, Copo vazio também é um livro necessário por tratar de uma questão contemporânea, recorrente e ainda pouco abordada na literatura: aquilo que chamam de ghosting, o ato de alguém terminar uma relação desaparecendo, sem dar satisfação. Se ainda não conseguimos nomear esse gesto e os sentimentos dele derivados em português, Natalia o faz com um turbilhão preciso de palavras. Transitando no tempo, em cortes bem articulados de presente, passado e futuro, conhecemos a história de Pedro e Mirela, e com ela percorremos o labirinto sombrio do abandono.
Giovana Madalosso — Copo vazio é um livro muito atual. Pedro e Mirela se conhecem através de um aplicativo e, depois, mantém parte da relação e mesmo o desmantelamento dela no ambiente virtual, onde a protagonista passa a procurar pistas sobre o sumiço de Pedro, fazendo um perfil falso para checar suas redes sociais. O crítico de arte Jonathan Crary diz que um traço decisivo da nossa era é o vício tecnológico, o hábito de voltar repetidas vezes a um vácuo de baixa intensidade afetiva. A busca compulsiva por respostas na rede acelera ou apenas torna mais doloroso o processo de um término? Falar do ambiente virtual era uma ideia que você teve ao conceber o romance ou o tema surgiu ao acaso, como algo já intrínseco às relações?
Natalia Timerman — A humanidade não estava pronta para a internet, para tamanha possibilidade de comunicação, para a conexão incessante que afeta tão profundamente os vínculos e nosso jeito de viver e pensar. O ser humano precisa tanto do que é público quanto do que é privado, íntimo; precisa justamente da diferença entre essas duas esferas, porque é na diferença que se opera a elaboração mútua do que se passa entre outras pessoas e do que se passa na solidão. A internet e as redes sociais estão apagando essa diferença; compartilhamos o que deveria ser só nosso, buscamos no ambiente virtual um afeto que antes só nos era provido pela proximidade, pelo olhar, pelo toque. É uma ótima definição essa de vácuo de baixa intensidade afetiva, que nos demanda mais e mais e mais porque nunca foi nem poderia chegar a ser suficiente. As redes sociais são o alimento da nossa insuficiência, sua confirmação disfarçada de saciedade. Por isso, a busca por respostas na rede, a tentativa de manutenção de um relacionamento que já tinha terminado, ou que talvez não tivesse nem chegado a começar, só pode tornar mais dolorosa e prolongada a agonia. Mirela e Pedro se conhecem através de um aplicativo de relacionamentos, começam a se falar por WhatsApp, se procuram e se olham no Instagram. Seria impossível falar de afeto, hoje, de um encontro que acontece na contemporaneidade, sem passar pela internet e pelas redes sociais, porque é por ali que quase tudo se dá, e é a comunicação incessante que determina o como do relacionamento específico entre Mirela e Pedro e de quase todos os relacionamentos. Falar do ambiente virtual foi, então, uma consequência de escolher abordar uma ligação afetiva, e não uma decisão prévia.
Giovana Madalosso — No começo do livro, há um trecho muito bonito em que Pedro e Mirela cantarolam uma música juntos logo depois de se conhecerem, e ela diz que “escandia as palavras, como para mostrar para Pedro que também sabia a letra, como se esse saber comum os unisse mais ou fosse algum tipo de sinal, como se antes de se conhecerem, sem saber, já cuidassem de um mundo que apenas esperava que chegassem.” Como já foi dito, esse mundo logo começa a desmoronar. Ainda idealizamos o amor? Isso está na base do sofrimento de Mirela e do sofrimento em geral das pessoas?
Natalia Timerman — Ainda idealizamos o amor, ainda o concebemos como fonte da nossa felicidade, ainda projetamos na vida a dois a alegria de nosso destino. E esse “ainda” diz muito sobre nossa concepção de nós mesmos, porque sugere que nos consideramos em evolução e que o amor seria um tema menor, quase uma fraqueza. Talvez seja: talvez o amor, nossa necessidade de amor, seja um dos grandes indícios de que somos falta, de que cada um de nós tem um buraco, de que na verdade somos esse oco, essa pouquidade. Antes de publicar Copo Vazio, cheguei a temer que as pessoas achassem até leviano um romance sobre amor, ainda mais em tempos tenebrosos no mundo e principalmente no Brasil. Mas tenho recebido todos os dias inúmeras mensagens de pessoas, homens e mulheres, se identificando com Mirela. Temos vergonha de sofrer por amor, embora seja uma experiência provavelmente universal e ainda atual, talvez sempre atual.
Giovana Madalosso — Muitos dizem que a decisão mais importante a se tomar ao escrever um romance é quem narra. Ainda que Copo vazio trate, em grande parte, da subjetividade de Mirela, você escapou do óbvio: dar a ela a voz de narradora, optando, em vez disso, pela narração em terceira pessoa. Como se deu essa escolha?
Natalia Timerman — Um dos grandes trabalhos no processo de escrita de Copo Vazio foi o de enxugar lágrimas e excessos. Um livro sobre o mais meloso dos sentimentos tem que cuidar muito para não cair em sentimentalismos, para não se construir sobre clichês. A opção pela terceira pessoa me pareceu fornecer a distância necessária de Mirela, uma distância em que cabe a ironia e a dúvida e em que se desfaz a autocomplacência. A construção do romance em diferentes tempos também pediu essa escolha, porque o narrador tem uma onisciência temporal, já que o livro começa no futuro.
Giovana Madalosso —Copo vazio apresenta um trabalho minucioso de construção narrativa. Quando Mirela e Pedro vão se conhecendo, ele dá pistas sutis de que talvez não seja um cara legal, mas ela não enxerga, tamanho o seu desejo de que a relação dê certo. Cegueira da paixão ou miopia causada pela cobrança social de sempre termos alguém ao nosso lado?
Natalia Timerman — Um pouco de cada coisa. Toda paixão é projetiva, vestimos o outro dos nossos sonhos, dos nossos anseios, e queremos, ou pelo menos uma parte de nós quer, continuar apaixonados, acreditando que a outra pessoa é mesmo tudo aquilo que esperamos dela. E nunca é, é impossível que o outro seja exatamente o que queremos que seja. A única maneira de alguém continuar correspondendo às nossas expectativas é à distância. É também o narrador em terceira pessoa que facilita ao leitor a percepção do desajuste entre a visão que Mirela tem de Pedro e o que ele se mostra ser; ela, apaixonada, não consegue e não quer enxergar. Talvez não conseguir enxergar se deva à própria paixão, e não querer enxergar se deva à pressão social para se ter alguém do lado, que no caso das mulheres, é enorme. O par “marido e mulher” é a linguagem carregando os preconceitos, nos mostrando o estado das coisas: como se só com um marido uma mulher se tornasse enfim mulher.
Giovana Madalosso — Em um dos melhores trechos do livro, Mirela é deixada por Pedro tão às escuras que vai buscar por respostas em lugares inusitados, quase perdendo a razão. Há pouco tempo, alguns poderiam dizer que a culpa por essa derrocada é de Mirela, mas hoje já sabemos que a dubiedade, o anulamento do outro e a privação súbita de afeto também podem configurar uma forma de abuso. Há bandido e mocinho nessa relação?
Natalia Timerman — Não há bandido e mocinho nessa relação, e essa é uma das grandes potências da literatura: manter complexidades, sustentar aberturas. Tendemos a classificar, a ordenar nas nossas caixinhas previamente concebidas porque nos é mais confortável lidar com o que conhecemos. A literatura não é útil, mas amplia nossas concepções. Pedro também é feito de impossibilidades, talvez ele até quisesse agir de modo diferente do que conseguiu, ao menos pela imagem que tem ou quer ter de si. O resultado de suas ações foi, no entanto, o que se chama hoje de irresponsabilidade afetiva: não assumir seu quinhão pelas expectativas da outra pessoa. Por outro lado, Mirela não se conforma com o próprio sofrimento, até ela o percebe como absurdo, anacrônico, o que, além de não servir para amenizar a dor, talvez ainda a acentue. Copo Vazio é estruturado nessas discrepâncias.
Giovana Madalosso —Além de escritora, você é psiquiatra e psicoterapeuta, tem o posto invejável de ouvinte. Até que ponto essa escuta tão íntima e diversa influencia a sua literatura, seja na criação de personagens, seja na escolha de temáticas?
Natalia Timerman — Ter acesso às inseguranças, medos e anseios de muitas pessoas, às suas hesitações e à linguagem de sua intimidade certamente influencia minha escrita, assim como a literatura, por sua vez, alimenta minha escuta, torna-a mais aberta, menos redutora. Copo Vazio foi concebido a partir da percepção de uma recorrência: homens e mulheres que sofrem por amor, desmedidamente, segundo seus próprios critérios. Eu via diante de mim, tanto no consultório quanto em meu trabalho num hospital penitenciário, pessoas se desfazendo num sofrimento tão excessivo quanto legítimo. Em alguns casos, havia também a vergonha pelo próprio sentimento, como se não fosse permitido, como se não fosse mais permitido, sofrer assim por alguém que foi embora. E no entanto, as pessoas sentem essa dor, e por mais bem sucedidas que sejam, mais independentes ou donas de si, se deparam com a própria fragilidade diante do abandono.
Giovana Madalosso — Ainda que sejamos amigas íntimas, há em você um mistério que não consigo decifrar. Você tem um companheiro, dois filhos e um enteado, trabalha em seu consultório, está fazendo um doutorado em literatura, escreve romances e contos, participa de um clube de leitura e colabora com diversas publicações. Fala a verdade: você dorme? Caso durma, qual o truque para conciliar tantas atividades e de forma tão magistral?
Natalia Timerman — (Risos e mais risos, gargalhadas)
Houve um tempo em que tinha dificuldade de dormir porque, fazendo tantas coisas, me impunha um ritmo do qual era difícil desacelerar quando chegava a hora de apagar as luzes. Agora tenho conseguido, mas não posso dizer que cumpra todas essas atividades assim tão maravilhosamente como você diz, porque me sinto devendo de todos os lados. Um dia, há alguns anos, estava passando a tarde com uma amiga que se formou em medicina junto comigo e seu filho, me sentindo culpada porque precisava escrever e estava ali, curtindo uma tarde de terça com as crianças, e de repente entendi: escrever é uma maldição. Eu observava a paz dessa amiga, tão cabível na nossa tarde da qual eu transbordava, e percebia que precisar escrever fazia e faria com que eu nunca me bastasse em ser médica, em ser psiquiatra, em ser mãe, por mais que essas coisas também me sejam cruciais.
Giovana Madalosso é roteirista e escritora, autora de A teta racional (2016, Grua), Tudo pode ser roubado (Todavia, 2018) e Suíte Tóquio (Todavia, 2020), entre outros textos.
Imagem: fotografia de Natalia Timerman por Renato Parada.
0 Comments